Sobre Imigração

MVA
4 min readJan 27, 2025

--

Wise Elders Portraiture Class at Centro Tyrone Guzman. ‘En Familia hay Fuerza,’ mural on the history of Immigrant farm labor to the United States (2017). Oil on linen. Image courtesy of Aliza Nisenbaum; Mary Mary, Glasgow and Minneapolis Institute of Art, Minneapolis

Qualquer antropólogo sabe que no encontro de culturas diferentes se revela o etnocentrismo, a tendência para os grupos humanos se considerarem mais “normais” do que os outros. Isto pode resultar em situações de violência xenofóbica e racista, como em muitas situações coloniais; em situações pluriculturais e com igualdade de oportunidades; ou, ainda, em misturas criadoras de culturas novas. Tudo depende de pesos e poderes relativos. Mas uma coisa é certa: o encontro não tem destino marcado à partida.

Qualquer antropólogo sabe, também, que a diferença cultural não é um determinismo nem a única variável a considerar. Classe social, status, género e sexualidade, religião ou língua, intersectam a identidade cultural mais genérica, criando não só diferenças e desigualdades no seio de cada grupo, como na sua interação com a sociedade envolvente.

Nas imigrações existe, à partida, uma desigualdade estrutural entre a maioria cultural que recebe e as minorias culturais que são recebidas. Racionalmente, isto obrigaria a pelo menos dois reconhecimentos: um, pela maioria, de que a minoria é necessária (por exemplo, por razões económicas; ou por obrigação moral de acolhimento dos necessitados; ou pelo enriquecimento cultural que proporciona); e outro, pela minoria, de que é necessária alguma adaptação aos modos de vida da sociedade hospedeira. Isto é o que aconteceu e acontece em muitos contextos em que a imigração foi ou é fundamental para a própria constituição da sociedade.

No caso europeu as coisas têm sido mais complicadas. Neste “Velho Mundo” os estados-nação constituíram-se na base do exclusivismo cultural, uma espécie de etnocentrismo institucionalizado. E promovido. Para mais, as históricas relações de desigualdade entre o que agora se chama o Norte e o Sul globais, criaram estruturas de preconceito que, no extremo, levaram a fenómenos como o antissemitismo, a islamofobia ou o racismo anti-negro — e também propiciaram fundamentalismos reativos.

No caso específico português há, ainda, especificidades próprias que afetam a imigração e a sua receção. São as especificidades de um país caracterizado por ser o mais rico dos pobres e o mais pobre dos ricos. Destaco duas: o facto de o incremento da imigração ser recente e acelerado; e o facto de essa imigração se dar para um país que tem fortes desigualdades sociais, económicas e de capital cultural entre a população nativa.

Acrescente-se um fator comum ao mundo nas últimas décadas: as políticas neoliberais destruíram o conceito de sociedade e de bem-comum, esgarçando as relações sociais e a rede do estado de bem-estar. E deixaram emergir, como alternativa às demandas sociais e económicas, as demandas identitárias. Os bodes expiatórios passaram a ser os imigrantes, as minorias étnicas e raciais, bem como as mulheres ou a população LGBT. As reivindicações nativistas — etnocêntricas e xenofóbicas — são parceiras de cama das reivindicações misóginas e homofóbicas, defendendo a “nação” como análoga à “família”. E são o pior identitarismo, porque excludente e não inclusivo.

Não foi, ao contrário da banalidade que anda a ser repetida, “a esquerda” que gerou esta revolta ao insistir nas políticas de igualdade, foi a aliança entre neoliberalismo económico e neoconservadorismo moral. Temos assistido em Portugal ao crescimento de uma extrema-direita identitária que estimula sentimentos anti-imigração; à cedência do centro-direita a essa agenda; e a uma culpabilização tanto da esquerda quanto da academia (em particular as ciências sociais) como avessa a equacionar “a questão da imigração” ou com tendência a edulcorá-la.

Quanto à academia, acontece que o grosso do conhecimento sobre migrações e sobre o encontro de grupos humanos diferentes resulta do conhecimento produzido pelas ciências sociais, junto com os movimentos sociais dos grupos diretamente afetados pelo etnocentrismo, a xenofobia e o racismo. Conhecimento esse que é descartado através de caricaturas simplistas ou categorias de acusação como “woke”.

Quanto à esquerda — e pensando na recente manifestação — não se trata de uma disputa contra a polícia (precisamos de boa polícia, bem paga e defensora dos direitos, liberdades e garantias). Não se trata de um “amor” pelos imigrantes (não se ama coletivos e abstrações, sejam imigrantes ou nativos…). E tampouco o antirracismo é simétrico do racismo, pois são realidades de natureza diferente: o último é uma pecha, o primeiro uma vontade de curá-la, apelando aos princípios constitucionais e dos direitos humanos.

É errado pensar que os portugueses “à esquerda” fecham os olhos à “questão da imigração”. Não só são eles que saem à rua para dizer que a xenofobia e o racismo não são aceitáveis, como eles sabem que políticas há que defender. Trata-se de assegurar igualdade de oportunidades a nativos e imigrantes. Trata-se de diminuir a desigualdade sócio-económica que afeta ambos. Trata-se de garantir direitos de cidadania a ambos. Trata-se, também, de prestar atenção à desvantagem estrutural em que as minorias migrantes naturalmente se encontram. Só estas políticas de fundo podem garantir uma integração mútua.

O encontro de culturas diferentes não tem destino marcado à partida. Mas os arautos do neoliberalismo económico e do neoconservadorismo moral exploram o potencial etnocêntrico, para que a revolta não seja contra a desigualdade mas contra a diferença. Na vanguarda, a extrema-direita; na retaguarda, aproveitando a oportunidade, cada vez mais o “arco da governação”.

*Publicado no jornal Público, 25 janeiro 2025

--

--

MVA
MVA

Written by MVA

Tentando desempacotar coisas desde 1960

No responses yet