Qualquer antropólogo sabe que no encontro de culturas diferentes se revela o etnocentrismo, a tendência para os grupos humanos se considerarem mais “normais” do que os outros. Isto pode resultar em situações de violência xenofóbica e racista, como em muitas situações coloniais; em situações pluriculturais e com igualdade de oportunidades; ou, ainda, em misturas criadoras de culturas novas. Tudo depende de pesos e poderes relativos. Mas uma coisa é certa: o encontro não tem destino marcado à partida.
Qualquer antropólogo sabe, também, que a diferença cultural não é um determinismo nem a única variável a considerar. Classe social, status, género e sexualidade, religião ou língua, intersectam a identidade cultural mais genérica, criando não só diferenças e desigualdades no seio de cada grupo, como na sua interação com a sociedade envolvente.
Nas imigrações existe, à partida, uma desigualdade estrutural entre a maioria cultural que recebe e as minorias culturais que são recebidas. Racionalmente, isto obrigaria a pelo menos dois reconhecimentos: um, pela maioria, de que a minoria é necessária (por exemplo, por razões económicas; ou por obrigação moral de acolhimento dos necessitados; ou pelo enriquecimento cultural que proporciona); e outro, pela minoria, de que é necessária alguma adaptação aos modos de vida da sociedade hospedeira. Isto é o que aconteceu e acontece em muitos contextos em que a imigração foi ou é fundamental para a própria constituição da sociedade.
No caso europeu as coisas têm sido mais complicadas. Neste “Velho Mundo” os estados-nação constituíram-se na base do exclusivismo cultural, uma espécie de etnocentrismo institucionalizado. E promovido. Para mais, as históricas relações de desigualdade entre o que agora se chama o Norte e o Sul globais, criaram estruturas de preconceito que, no extremo, levaram a fenómenos como o antissemitismo, a islamofobia ou o racismo anti-negro — e também propiciaram fundamentalismos reativos.
No caso específico português há, ainda, especificidades próprias que afetam a imigração e a sua receção. São as especificidades de um país caracterizado por ser o mais rico dos pobres e o mais pobre dos ricos. Destaco duas: o facto de o incremento da imigração ser recente e acelerado; e o facto de essa imigração se dar para um país que tem fortes desigualdades sociais, económicas e de capital cultural entre a população nativa.
Acrescente-se um fator comum ao mundo nas últimas décadas: as políticas neoliberais destruíram o conceito de sociedade e de bem-comum, esgarçando as relações sociais e a rede do estado de bem-estar. E deixaram emergir, como alternativa às demandas sociais e económicas, as demandas identitárias. Os bodes expiatórios passaram a ser os imigrantes, as minorias étnicas e raciais, bem como as mulheres ou a população LGBT. As reivindicações nativistas — etnocêntricas e xenofóbicas — são parceiras de cama das reivindicações misóginas e homofóbicas, defendendo a “nação” como análoga à “família”. E são o pior identitarismo, porque excludente e não inclusivo.
Não foi, ao contrário da banalidade que anda a ser repetida, “a esquerda” que gerou esta revolta ao insistir nas políticas de igualdade, foi a aliança entre neoliberalismo económico e neoconservadorismo moral. Temos assistido em Portugal ao crescimento de uma extrema-direita identitária que estimula sentimentos anti-imigração; à cedência do centro-direita a essa agenda; e a uma culpabilização tanto da esquerda quanto da academia (em particular as ciências sociais) como avessa a equacionar “a questão da imigração” ou com tendência a edulcorá-la.
Quanto à academia, acontece que o grosso do conhecimento sobre migrações e sobre o encontro de grupos humanos diferentes resulta do conhecimento produzido pelas ciências sociais, junto com os movimentos sociais dos grupos diretamente afetados pelo etnocentrismo, a xenofobia e o racismo. Conhecimento esse que é descartado através de caricaturas simplistas ou categorias de acusação como “woke”.
Quanto à esquerda — e pensando na recente manifestação — não se trata de uma disputa contra a polícia (precisamos de boa polícia, bem paga e defensora dos direitos, liberdades e garantias). Não se trata de um “amor” pelos imigrantes (não se ama coletivos e abstrações, sejam imigrantes ou nativos…). E tampouco o antirracismo é simétrico do racismo, pois são realidades de natureza diferente: o último é uma pecha, o primeiro uma vontade de curá-la, apelando aos princípios constitucionais e dos direitos humanos.
É errado pensar que os portugueses “à esquerda” fecham os olhos à “questão da imigração”. Não só são eles que saem à rua para dizer que a xenofobia e o racismo não são aceitáveis, como eles sabem que políticas há que defender. Trata-se de assegurar igualdade de oportunidades a nativos e imigrantes. Trata-se de diminuir a desigualdade sócio-económica que afeta ambos. Trata-se de garantir direitos de cidadania a ambos. Trata-se, também, de prestar atenção à desvantagem estrutural em que as minorias migrantes naturalmente se encontram. Só estas políticas de fundo podem garantir uma integração mútua.
O encontro de culturas diferentes não tem destino marcado à partida. Mas os arautos do neoliberalismo económico e do neoconservadorismo moral exploram o potencial etnocêntrico, para que a revolta não seja contra a desigualdade mas contra a diferença. Na vanguarda, a extrema-direita; na retaguarda, aproveitando a oportunidade, cada vez mais o “arco da governação”.
*Publicado no jornal Público, 25 janeiro 2025