Que tal um pequeno país decente?

MVA
4 min readMar 8, 2022

Não é por acaso que escrevo estas linhas em tempo de guerra. Os nacionalismos do leste europeu, sobretudo no espaço ex-soviético, batem-nos à porta. São-nos, felizmente, algo estranhos. Assustam-nos. Têm algo de velho. Sempre à beira duma xenofobia facilmente assumida e, obviamente, à beira da tentação totalitária — quando não já lá. Cientistas sociais e políticos poderão explicar isso de um modo que não essencialize ou transforme em exóticos os “orientais”. Não é essa a minha intenção aqui. Simplesmente quis começar por dizer — ou por defender — que não temos nada a ver com aquilo. Ainda bem.

Mas temos um outro tipo de problema, um outro tipo de nacionalismo, e sobre o qual já escrevi tanto, que me limito agora a resumi-lo: a democracia portuguesa não soube verdadeiramente criar uma nova narrativa nacional que substituísse a herdada da ditadura e do colonialismo (e mesmo desde pelo menos o período liberal). Sabemos em que assenta ela: “Descobrimentos”, colonização e colonialismo, uma pretensa ideia de universalismo que nega assimetrias e desigualdades, o discurso lusotropicalista. E por aí fora, cheia de passadismos, como que envergonhada do presente. Aquela narrativa foi quando muito “modernizada” com a invenção da Lusofonia (uma ideologia mais do que um facto), com a ilusão da CPLP, e a única diferença que se pode apontar na democracia será talvez o europeísmo. De resto, basta ver como em Portugal se lida com o racismo para se perceber quão pouco mudou em essência.

Às vezes perguntam-me “mas então que querias tu”? Bom, posso fazer uma exercício, assumidamente utópico ou brincalhão (será?), de imaginação da narrativa nacional que gostaria que o Portugal democrático promovesse. (Aviso à navegação: este não é um texto sobre o sistema político-económico, mas sobre a narrativa nacional mesmo no atual sistema)

Em primeiro lugar, ela assumiria como boa, e não como má, a pequenez. Small IS beautiful. Países grandes são uma pain in the ass, um saco de problemas.

Em segundo lugar, ela assumiria o complexo expansão do estado português (vulgo, “Descobrimentos”)/escravidão / colonialismo como… complexo: contraditório, a necessitar de reparações simbólicas e não só, e visto como facto histórico que não tem de dominar o presente com os aspetos tidos por “bons”e em negação dos aspetos efetivamente maus.

Em terceiro lugar, ela assumiria que o Portugal contemporâneo não se identifica com qualquer essência “racial”, cultural ou religiosa, promovendo abertamente a celebração das influências árabe, berbere e islâmica, judaica, africana e cigana.

Em quarto lugar, todos estes aspetos seriam celebrados em termos de regresso à terra, regresso ao país como lugar e oportunidade de construir algo de novo, que pensa mais em termos de futuro do que de passado.

Em quinto lugar, mas como corolário do quarto ponto, essa imaginação do futuro no presente passaria pela prática do acolhimento planeado e propositado de pessoas de outras origens — de migrantes — para, desde logo, salvar o país da decadência demográfica, mas também para promover uma multiculturalidade que tivesse como base constitucional o respeito pelos direitos humanos.

Em sexto lugar, essa imaginação do futuro assentaria nas próprias conquistas da democracia como projeto sempre por cumprir ou melhorar. Um projeto Constitucional: liberdade, direitos humanos, igualdade de oportunidades e sócio-económica, serviços públicos universais, igualdade de direitos nos planos étnico e racial, de género, sexual, etc, com o reconhecimento pleno das categorias historicamente discriminadas como condição para combater a sua subalternidade.

Em sétimo lugar, mas como corolário do sexto ponto, isto consistiria em, simbolicamente, celebrar o 25 de abril, que passaria a Dia de Portugal, eliminando a bizarria do 10 de junho herdado do passado. Cravos e não cruzes de Cristo.

Em oitavo lugar — e sei quão difícil isto é agora e será no futuro próximo— Portugal deveria equacionar como objetivo futuro a neutralidade na cena internacional, junto com forte atividade na ajuda humanitária e ao desenvolvimento e na manutenção da paz (como, aliás, as Forças Armadas já fazem hoje). A aposta na União Europeia, essa manter-se-ia, e nisso a narrativa da democracia tem acertado.

Em nono lugar, deveria haver uma celebração permanente do que se vai conquistando dentro destes valores enunciados: desde o índice de paz e segurança até aos progressos na igualdade de género ou sexual, passando pelos serviços públicos, aspetos positivos dos estilos de vida ou da produção cultural, ou hospitalidade a novas gerações e profissões vindas de fora. Celebrar é o resultado daquilo em que se investiu ou se deveria investir: do turismo sustentável de qualidade às inovações tecnológicas ou à produção cultural como valor (no duplo sentido da palavra), entre tantas outras coisas.

Uma nova narrativa, tornada parte de manuais escolares e do discurso oficial (porque, convenhamos, não há estado-nação sem doutrinação, e este texto poderia ser, mas não é, uma crítica radical a esta forma de organização política), permitiria também gerar uma vigilância maior sobre as falhas na, e traições à, prossecução de todos os valores que elenquei.

Um pequeno país decente, portanto. Torná-lo decente para poder celebrar essa decência. Não precisamos de mais nada, e já é tanto.

Pronto, não vos maço mais, voltemos à guerra….

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