O desaparecimento mágico do racismo (e não só)

MVA
4 min readMar 14, 2024

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Magritte, “Décalcomanie”

Mal se verificou o sucesso eleitoral da extrema-direita e imediatamente comunicação social, comentadores e partidos — da esquerda à direita — concordaram no seguinte diagnóstico: trata-se de um voto “de protesto”, de um voto “anti-sistema”, de um voto de “descontentamento” com a política.

Ora, se quisermos pensar racionalmente, impõe-se uma pergunta: qual a base para este diagnóstico? O que sabem objetivamente sobre o que afirmam? Em que estudos baseiam a sua opinião?

Mais: este diagnóstico apressado é complementado pela urgência em afirmar que “18% dos portugueses não podem ser racistas (etc.)”.

Por fim, a “receita” também parece ser consensual: é preciso “acarinhar” os eleitores do CH e, quando os seus problemas estiverem resolvidos, eles regressarão ao colo dos partidos democráticos.

E que problemas são esses? Também parece ser consensual que são económicos, de acesso a serviços públicos, de perceção da corrupção, de “abandono” das regiões ou áreas marginalizadas. (Falta aqui qualquer coisa, certo? Mas, chiu, não se pode dizer).

Tudo isto carece de confirmação. Tudo isto é uma reação automática a um paradigma que parece ser comum a direita e esquerda: a centralidade das condições económicas. Para a direita, no campo capitalista, trata-se sempre de uma questão de criação de riqueza, acumulação de lucro e expectativa ou promessa de trickle down; para a esquerda trata-se sempre de uma questão de distribuição (in)justa da riqueza, nomeadamente pelo trabalho face ao capital.

Este consenso paradigmático — que é, no fundo, o efeito cultural de se viver em capitalismo — leva a uma secundarização de questões identitárias como o racismo, a xenofobia, o sexismo, a homofobia, ou o nacionalismo. Elas são vistas como variáveis dependentes.

Acontece que elas são não só “autónomas”, para não dizer independentes, como se interseccionam mutuamente e, desde logo, com as questões socioeconómicas.

Sabemos que bem mais do que 18% dos portugueses têm crenças racistas — isso, sim, está estudado. Logicamente, muitos dos eleitores do CH terão votado (de novo, teremos de o estudar para saber, não vá eu contradizer-me) com base nessas crenças, implícita e por vezes explicitamente propagandeadas pelo CH.

O sucesso do CH simbolizará, antes do mais, o fim da censura social em relação àquelas crenças. Isso assusta direita e esquerda democráticas (e ainda bem que assusta, a mim aterroriza-me), levando ou ao refúgio nas mui estabelecidas crenças lusotropicalistas ou em dogmas ideológicos sobre hierarquias entre níveis de pertença e identidades sociais. Além do medo de falar do elefante na sala, não vá ele inchar e partir ainda mais loiça.

Há também, neste atavismo do campo político tradicional, um outro problema cultural que resulta de um efeito colateral da punição social do racismo (etc.) desde o pós-Segunda Guerra Mundial, da criação da ONU e da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos: a imaginação do “racista” como um monstro, um ser moralmente defeituoso e agressivo. Inimaginável como sendo o eleitor ao meu lado na mesa de voto.

Acontece, porém, que a pessoa com crenças racistas é também, e quase sempre, uma pessoa que pode ser decente, solidária, amorosa, etc., em determinados momentos da vida, do quotidiano, em determinadas relações interpessoais e sociais. Geralmente a visão do mundo do detentor de crenças racistas funcionará, creio que isso sim, na base de categorizações dicotómicas, simples e simplistas, como Nós-Outro(s), nacional-estrangeiro, branco-preto, homem-mulher, hetero-gay, cigano-não cigano, cristão-judeu, muçulmano…. Quase sempre um “guia”, um roteiro, para navegar o mundo, menos vezes uma ideologia programática. Os seus efeitos não são menos negativos por isso, mas não reduzamos o racismo a um extremismo de uns poucos.

E estas categorizações simplistas, além de incluírem uma hierarquização entre os termos dos binómios, foram recebidas pelas pessoas, quer historicamente (que se esperaria, desde logo, de séculos de escravização, colonialismo e império?), quer nos processos de reprodução social geridos pelos estados-nação, pelos sistemas educativos, pelas representações da cultura popular, pela ordem de género, e por aí fora.

Se a queixa eleitoral revela “abandono social”, por que razão não votaram em alguns partidos de esquerda que defendem acerrimamente a igualdade? Se a queixa eleitoral revela perceções de corrupção, porque não votaram nos partidos que têm estado imunes a isso? Se a queixa eleitoral revela atitudes antissistema, porque não se abstiveram ou votaram branco ou nulo?

Estas minhas perguntas são propositadamente manipuladas na sua suposta ingenuidade. Cumprem a função de forçar o argumento e a resposta “provocatória”: porque nenhum desses partidos (ou a abstenção, o voto branco e o voto nulo) passa a mensagem nacionalista, anti-imigração, anti-ciganos, ou contra o delirante conceito de “ideologia de género”.

Há também, no apelo do CH, espaço para a queixa socioeconómica? Sem dúvida, só que ela é declinada não na linguagem do “também tenho direito”, mas na linguagem do “eles não têm direito”. “Eles”: não os “donos disto tudo”, mas os Outros que desafiam o meu privilégio de branco, homem, português, cristão, ou mesmo imigrante já instalado, e os políticos intérpretes dos direitos desses Outros.

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