Antes de ter decidido, e bem, formar uma comissão independente para investigar os abusos sexuais no seu seio, vários responsáveis da Igreja Católica portuguesa afirmaram frequentemente que o problema não existiria em Portugal do mesmo modo que noutros países. Implícita estava a ideia dos “brandos costumes”, um velho tropo excecionalista largamente promovido durante a ditadura que nos congelou sobre nós mesmos durante quase 50 anos.
Quando confrontada com as crescentes queixas dos movimentos sociais sobre o racismo estrutural em Portugal, a responsável pela área do combate às discriminações, a dirigente socialista Ana Catarina Mendes, negou que tal existisse em Portugal. Também os “bons costumes” estão aqui implicados, mas a eles acresce a interiorização, inquestionada, da herança da ideologia do Luso-Tropicalismo que foi adotada pela ditadura para, face às pressões internacionais, promover o colonialismo português como excecional, menos cruel, menos racista — e até promotor de um futuro humanista e miscigenado….
Esta ideologia passou, na democracia, a narrativa nacional de senso-comum, muitas vezes promovida pelo próprio Estado sob formas derivadas, como a Lusofonia (um conceito do pós 25 de abril e claramente “substituto” do ancoramento da identidade nacional na expansão e colonialismo). Mas não são apenas os “bons costumes”, o excecionalismo, ou a perpetuação do Luso-Tropicalismo o que está em causa. É a negação, bem explicada por Grada Kilomba no seu livro Memórias da Plantação.
Às vezes o negacionismo assume formas particularmente cruéis, como quando o primeiro-ministro António Costa estabeleceu uma equivalência simétrica entre as ideias do neo-nazi e condenado Mário Machado e as do ativista antirracista Mamadou Ba. É que bons costumes, excecionalismo, luso-tropicalismo feito cadáver-sobrevivente (zombie?) não subscrevem, claro, ideias assumidamente racistas; mas tampouco podem aceitar a luta contra o racismo, já que é vista como… reveladora da existência do mesmo.
(Ou quando responsáveis de museus duvidam que em Portugal haja o mesmo problema que noutros países quanto à necessidade de restituição de peças; ou quando empregadores dizem não sentir nenhum problema quanto a desigualdade de género em recrutamentos e promoções, já que “o que conta é estritamente o mérito”…)
Aquela nuvem de palavras em associação — bons costumes, excecionalismo, luso-tropicalismo, lusofonia — são peças de um sistema cultural e ideológico negacionista, com efeitos na prática política e, logo, nas vidas das pessoas. Sobre tudo isto já muito foi escrito, inclusive por mim. Mas recentemente tenho verificado uma curiosa extensão deste fenómeno português para a área económica do marketing e branding do país: a forma como esta nuvem de palavras é usada, se bem que adaptada a semânticas mais “modernaças”, na atração de expats, de imigrações qualificadas, de turismo e de investimento. “Pacífico”, “hospitaleiro”, “como [introduzir nome de país desenvolvido] há 30 anos”, “não-racista” (isto dito por pessoas negras endinheiradas que se iludem por, naturalmente, não experienciarem o racismo do mesmo modo que nos lugares de origem).
Quando a hierarquia da Igreja Católica é confrontada com os resultados da Comissão Independente, a reação parece irracional e patética. Na realidade ela é perfeitamente coerente, pois os mecanismos da negação não são mecanismos de mentira, são mecanismos de ilusão. Idem para a perceção do racismo. Idem para os brandos costumes (numa sociedade onde o grau de confiança nos estranhos é dos mais baixos da Europa).
Vivemos em neurose negacionista. É o Luso-Negacionismo. Ele virou identidade e é tramado mudá-lo.