N’ América, há quarenta e tal anos

MVA
6 min readOct 25, 2020

De entre os diferentes períodos em que vivi nos EUA o mais marcante terá sido o primeiro. Desde logo, por ter acontecido aos 17 anos, no ano letivo de 1977–78. Mas também pelo que significa recordar, hoje, uma época já tão remota. Nessa recordação vejo, agora e à beira das eleições decisivas de 2020, muito daquilo que ainda subsiste na sociedade estadunidense mas que na época não era vertido em política do mesmo modo que hoje.

Fui como estudante de intercâmbio para Baltimore, no estado de Maryland, colocado em casa de uma família cujos filhos já frequentavam a escola que me acolheu. Esta era uma escola privada, só para rapazes. Tratava-se duma prep school, uma escola secundária que prepara os alunos para as universidades da Ivy League, onde a elite estadunidense se reproduz e cria os laços e as redes de conivência e apoio (os mais críticos diriam de compadrio e tráfico de influências).

Frequentada, na sua esmagadora maioria, por rapazes wasp (White Anglo-Saxon Protestants), além de mim como estudante estrangeiro de intercâmbio, recordo um grupo de no máximo seis rapazes negros, um filho de um japonês e duma indiana — que foi o meu melhor amigo nesse ano, o E. — e apenas meia-dúzia de judeus (um dos quais o único gay assumido e dirigente do grupo de teatro, em cujas encenações de musicais participei).

Dois dos judeus eram os meus irmãos de acolhimento. A minha família, originalmente do Wisconsin, vivia em Baltimore, em virtude do meu pai de acolhimento ter encontrado trabalho como médico patologista num hospital local. A minha mãe de acolhimento não trabalhava. Vivíamos na zona Norte de Baltimore, num quase-subúrbio no meio duma floresta, com enormes casas instaladas em gigantescos terrenos de prados e bosques percorridos por riachos. O quotidiano resumia-se ao itinerário entre este paraíso e a escola, também numa zona nobre nas imediações da Universidade Johns Hopkins. Uma vida familiar algo reclusa, quer pela ausência da parentela mais alargada, quer pelo isolamento etno-religioso tanto no bairro quanto na escola.

O E., o meu melhor amigo na escola, era filho de dois cientistas e académicos com o capital simbólico que permitia a circulação pelos eventos e festas da comunidade escolar. A sua extraordinária beleza também era um trunfo. As festas que juntavam os rapazes da minha escola com as raparigas da escola feminina sua parceira (a algumas centenas de metros de distância) pareciam-me ocasiões de escolha matrimonial, a que não eram alheias todas as demonstrações possíveis de status e riqueza. Isto não impedia que eu sentisse uma corrente subterrânea de algo como infelicidade. Manifestava-se no uso excessivo de álcool, ou na tendência para o bullying, tantas vezes racista e classista (e antissemita…) e sempre retive a imagem da decadência crescente duma rapariga com quem o E. ainda namorou: a sua rebeldia passava pela bebedeira, pela condução destravada, e por uma fixação nele, que mais tarde percebi dever-se à consciência de que a relação não teria futuro por razões, bem…, raciais. É que era isso mesmo.

Quem mo explicou foi o F. Ele frequentava uma escola pública, num subúrbio de classe média de Baltimore. Branco e não-judeu, era, porém, um deslocado das normas locais (anos mais tarde sairia do armário em que se encontrava fechado e hoje é um homem gay e feliz nas montanhas do Oeste do país). O F. ficou meu amigo porque tinha sido estudante de intercâmbio no Gana e era voluntário do acolhimento dos estrangeiros em Baltimore. Também o E. tinha sido estudante no Brasil. Os três construímos ainda amizade com os Cohen, uma família judia que, ao contrário da minha, vivia no centro histórico de Baltimore e cujos filhos, um pianista de concerto e uma artista plástica, também haviam sido estudantes de intercâmbio.

Escapávamos aos constrangimentos locais, ao guião que era suposto seguirmos, em grande medida graças às nossas experiências fora dos EUA; graças à nossa diferença étnica, fenotípica ou religiosa; graças à nossa diferença sexual, que já espreitava, temerosa, pelas frinchas dos armários de alguns de nós. Mas vivíamos confortáveis e resguardados — ou no bairro na floresta ou no ambiente liberal do centro histórico — apesar de tudo pouco expostos a esse outro mundo, o das desigualdades (só muito ao de leve se vislumbrava algo disso no F. e na forma como manteve off-limits, por muito tempo, o seu mundo de classe — subúrbio, “little boxes, all the same”, picket fences, autocarros escolares amarelos, escola secundária caótica).

Um dia, a senhora que trabalhava em casa da minha família convidou-me para ir à igreja com ela. A senhora era negra. Não sei porque surgiu o convite. Havia a hipótese religiosa: presumiria que eu fosse um cristão deslocado, para mais desviado pela frequência da sinagoga nos feriados mais importantes, e celebrando o shabbat numa casa kosher, portanto necessitando de resgate? Sentiria que o meu resguardo social me impedia de conhecer o outro lado da linha do comboio, como se diz numa expressão americana? Não sei, nunca saberei, e aquelas suposições serão provavelmente tolas. Mas sei que a breve deslocação dos bosques de Ruxton para West Baltimore foi uma viagem. Sei hoje que o meu encantamento de então com a alegria e a emoção do serviço religioso numa igreja afro-americana tem muito, demasiado, de encantamento pelo exótico, com a derrapagem racista que isso comporta. Mas também sei hoje que naquele momento, e no convívio que se seguiu, senti-me em casa duma forma que me custava sentir no mundo wasp, em que me encontrava sempre em auto-vigilância e esforço. Sei ainda uma terceira coisa: que fui acolhido de forma ambígua, visto como um dos brancos, mas talvez not quite white. Não me sentia certamente em casa, porém, na degradação do bairro e na evidência empírica dum apartheid em pleno funcionamento.

As coisas cruzaram-se todas num episódio com o seu quê de pícaro. Numa saída noturna aos bares da zona portuária da cidade, e com o álcool bebido clandestinamente a produzir efeito, mijei para as águas do porto a partir dum pontão sujo e semi-abandonado. Vindo não sei de onde, um carro da polícia surpreendeu-me. O agente pediu-me a identificação. Mostrei-lhe a cópia do passaporte. Surpreendido por aquele “Portugal”, o agente perguntou: “Porto Rico?” Virei hispanic na hora. Fui preso por indecent exposure — e mantenhamos o registo étnico: o polícia era branco e tinha um apelido irlandês. Passei a noite numa cela, com companheiros mais tranquilos do que assustadores. Na manhã seguinte fui levado a tribunal e a minha mãe de acolhimento apareceu. Alegou para o juiz que eu deveria ser desculpado pela minha juventude mas, sobretudo, “porque na minha cultura aquilo era normal”. Bendito efeito da antropologia pública de Margaret Mead e bendita ironia inteligente da minha mãe :-)

Talvez uns dois anos depois a minha família informava-me que o meu registo havia sido eliminado, graças à intervenção de contactos seus, permitindo assim que os meus regressos aos EUA não pudessem encontrar obstáculos. Em suma, quem pensar que a “cunha” é coisa do sul da Europa, desengane-se. Curiosamente, regressaria à esquadra onde estive preso. Parte do currículo escolar do 12º ano na minha escola consistia num estágio no “mundo real” e escolhi trabalhar no principal jornal local, o Baltimore Sun. A minha tarefa era recolher os relatórios de crimes, fornecidos pelas esquadras da cidade. Nunca tive uma aprendizagem tão dura e rica sobre a natureza de classe e racial da criminalização. Nem sobre a violência, a pura violência.

Como parte do programa de intercâmbio, tive direito a duas estadias de alguns dias com famílias noutras zonas do país, isto no fim do ano e já terminadas as aulas. No Connecticut coube-me uma família negra de classe média-alta em que o esforço pelo que hoje chamaria de uma “neutralidade” racial era quase penoso. Nada em casa transpirava as tradições da experiência afro-americana e o assunto das relações raciais nunca foi abordado. Na West Virginia vi o pesadelo da desindustrialização, já então, concretizado na pobreza da família branca com que fiquei, bem como o paroquialismo dum desconhecimento absoluto do mundo para lá dos montes.

Passaram mais de 40 anos. Ao longo deles regressaria muito aos EUA. Vivi no norte do estado de Nova Iorque, passei uma temporada longa em Chicago, fiz itinerância entre Lisboa e Boston, visitei família adotiva, família biológica e amigos em diversas localidades, viajei em trabalho e em puro lazer. Mas o jovem de 16 anos que chegou lá pela primeira vez praticamente no dia do seu 17º aniversário, vindo da experiência revolucionária em Portugal, ganhou uma nova família e amigos que ainda ama muito e ganhou um país que passou a ser seu também. Um país ferido, como todos os outros, só que com feridas próprias e específicas.

Como é que, a poucos dias das eleições e amando a América como amo, me ocorreu escrever esta memória? É uma questão que só ao leitor compete responder.

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