Meu Israel, minha Palestina
Este é um texto confessional, o que não o torna menos político. E é motivado pela emergência humanitária — humana — em Gaza. Aos meus 17 anos fui viver um ano nos EUA. Fiz lá o 12.º ano, que então ainda não existia em Portugal. Como estudante de intercâmbio vivi com uma família que me acolheu como mais um filho. Ainda hoje me considero parente. Até a minha filha adolescente teve recentemente a oportunidade de conhecer a minha mãe adotiva americana, que esteve de passagem em Lisboa. A minha família americana é judia. Eu cresci numa família biológica ateia, pelo que, e não fosse o ambiente cultural português, poderia dizer que em termos de religião sei bem mais sobre judaísmo do que sobre catolicismo ou cristianismo em geral. Até no meu inglês surgem com frequência expressões iídiche (a minha família é de origem ashkenazi) e tenho referências culturais que me colocam à-vontade em muitos ambientes judaicos.
Talvez por toda essa experiência, numa idade ainda tão formativa, sempre tive um horror visceral ao antissemitismo. Ainda tenho. É estrutural, não muda. Já me levou a dissabores com pessoas próximas e com pessoas de meios onde não julgava que o antissemitismo — do “corriqueiro”, se é que tal existe, ao ideológico — fosse possível. Não deveria admirar-me, como antropólogo. Afinal, trata-se de Portugal, e não creio que os leitores precisem de uma ensaboadela de História.
Salto no tempo. Ao longo da década de 2010 passei temporadas mais ou menos longas em Israel. Morei em Jerusalém e Telavive, arranho um hebraico muito básico. Dei aulas na Universidade Hebraica de Jerusalém, mas sobretudo fiz trabalho de campo com judeus brasileiros que tinham acedido à cidadania israelita. Usufruíam da lei do “direito de retorno” — um direito dado aos judeus e que é negado aos palestinianos que hoje constituem uma diáspora de exílio. Entre eles fiz grandes amigos e amigas. Até hoje. Com eles percebi as nuances das variedades de sionismo, aprendi a sua visão (é isso que um antropólogo faz) do sionismo como movimento que eles veem como de libertação nacional. Aprendi também como, posicionando-se eles à esquerda, eram contra a Ocupação dos Territórios Palestinianos e os colonatos. Mas não partilhavam a minha visão do sionismo como colonialismo de assentamento na Palestina, construído na época dos nacionalismos e colonialismos europeus, de onde os fundadores do Estado vieram. Para eles, sobrepunha-se a história de antissemitismo, antijudaísmo, pogroms e, por fim, a Shoah, ou Holocausto.
Eu tinha plena consciência da situação palestiniana. Embora o meu trabalho, a minha pesquisa (publicada e facilmente acessível) fosse sobre as motivações para a aliyah (o acesso à cidadania israelita por qualquer judeu), sabia perfeitamente o que tinha sido a nakba palestiniana e as suas consequências; sabia o que era a ocupação e os colonatos; sabia o que era a segregação legal em muitos aspetos da vida também dos “palestinianos cidadãos de Israel”. E nunca me deixei seduzir pela hasbara — a publicidade do Estado de Israel sobre si próprio –, pela retórica da “única democracia” ou pelo homonacionalismo, mesmo sendo gay, pois sei por experiência própria como as democracias não deixam de permitir sistemas de desigualdade e se ancoram em passados de acumulação através da extração colonial. Mesmo sendo, obviamente, a democracia um valor em sim mesmo.
Que fiquei a saber? Nada que vos surpreenda, espero. Que, apesar da história da construção do Estado de Israel, as pessoas que lá nasceram, que lá cresceram, estão na sua terra e não há outro sítio para onde possam ir ou para onde seja justo fazê-las ir. Mas fiquei a saber outra coisa, e essa dói tanto quanto o antissemitismo que referi acima. Fiquei a saber que a injustiça a que o povo palestiniano está sujeito há tanto — não, não estou a falar de organizações, dos Hamas deste mundo, mas de pessoas — nos envergonha como cidadãos que cresceram depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos. E que essa sensação, intolerável, exponenciou-se com os ataques a Gaza. Na sequência da barbaridade do 7 de outubro e do trauma que instaurou, a desproporcionalidade genocida está agora à vista de todos. Ela é, aliás, explicitada pelas autoridades de Israel, pelo que já não sobram dúvidas que não sejam mero exercício especioso.
O sionismo — do século XIX e XX — e o Estado de Israel impuseram ao mundo, e mais do que tudo a todos os judeus do mundo, a ideia errónea de que as duas realidades, a judeidade e Israel, são uma e a mesma coisa. E o Ocidente impôs-se a si próprio a ideia — perversamente antissemita, e escuso-me a explicar porquê — de que tudo o que o Estado de Israel faça é legítimo e reparador da culpa ocidental pelo antissemitismo. A ultradireita e o fundamentalismo cristão, ambos histórica e estruturalmente antissemitas, perceberam-no melhor do que ninguém, como se vê pelo seu culto do Estado de Israel (deixo-vos com a vinheta das bandeiras de Israel que hoje adornam os altares das igrejas evangélicas). O tratamento dos palestinianos pelo Estado de Israel representa neste momento uma força fascizante, masculinista, racista e violenta dos autoritarismos nacionalistas. O Ocidente das democracias liberais olha para isto tudo com o argumento das falsas simetrias (“o conflito do Médio Oriente”, a “guerra entre Israel e Gaza”), negando a desproporção, e compra uma nova definição de antissemitismo que equivale a este todas as expressões anti-sionistas ou críticas do Estado de Israel.
Já perceberam que a minha história, e portanto a minha perspetiva, não segue a dicotomia simplista de quem faz uns elogios deslumbrados a Israel, provavelmente fascinado pelos dias de praia e festa na bolha de Telavive, ou de quem, no justo apoio à causa palestiniana, todavia não reflita sobre o antissemitismo estrutural que perdura. Há anos que leciono, em português e em inglês, uma cadeira sobre História, Cultura e Política de Israel/Palestina. Este ano senti que toda a minha motivação havia mudado, que havia uma sombra negra pairando no fundo da sala. Tem sido penoso pensar no “meu Israel” (como perceberam, tenho mais intimidade com ele do que com a Palestina — ou o resto da Palestina histórica). E na judeidade que acompanhei e acompanho com carinho e intimidade cultural, incluindo pesquisa posterior, a meias com Ethel Feldman, sobre uma biografia da diáspora e um percurso judaico não-sionista. Refugio-me na longa e riquíssima história do pensamento e ação judaicas não-sionistas, no cosmopolitismo e multiculturalidade da diáspora, e nos exemplos de tantos judeus e tantas judias que estão em choque e revolta face ao massacre em Gaza e que sabem que a maior urgência de todas é reparar o drama e a injustiça a que a Palestina foi e está sujeita. Pessoas que, com sabedoria, invocam o princípio central de tikun olam: “reparar o mundo”, a obrigação moral de corrigir injustiças através da ação.