It takes n to tango

MVA
3 min readOct 4, 2020

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Working-class men dancing tango in Rio de la Plata in 1904. Archivo General de la Nación Argentina

Qualquer pessoa envolvida em movimentos sociais pela igualdade, ou versada nas discussões das ciências sociais e humanas sobre o assunto, sabe o que é a teoria da interseccionalidade (e os seus limites, bem como as críticas a ela dirigidas ou as elaborações feitas a partir dela).

Expressemos melhor ou pior as nossas ideias, com maior ou menor irritação ou com linguagens as mais variadas, certo é que qualquer feminista negra, por exemplo, sente que a questão racial não é levada verdadeiramente a sério num meio feminista maioritariamente branco ou num contexto nacional em que as pessoas negras são subalternizadas e as suas experiências de vida invisíveis.

Por “levar a sério” entenda-se compreender verdadeiramente, com saber de experiência feito, a experiência duma vida social inteira de subalternização pela questão racial (questão que não afeta quem não foi por isso subalternizado, uma vez que o racismo não é simétrico, mas produto da racialização histórica de certas populações e pessoas como negras). Apenas um louvável mas genérico “não somos racistas“ não chega. Muitas vezes nem um mais avançado “sou antirracista”.

Outros exemplos, entre n, seriam o da lésbica que vê as suas questões subalternizadas quer num movimento ou teorização feminista maioritariamente heterossexual, quer num movimento LGBT que seja maioritariamente masculino. Etc. Os exemplos multiplicam-se consoante a questão de desigualdade estrutural que queiramos contemplar — de género, sexualidade, etnicidade e “raça”, classe, etc. Quando alguém em posição estrutural subalterna em função duma característica procede a uma crítica da hegemonia, não está a ser racista, sexista, homofóbica, classista. Está a dizer: “Nesta área da minha vida, nesta área em que fui encaixada pelos processos de identificação socialmente construídos, sinto-me de fora”. O que quer também dizer: “noutras áreas não”.

Não se trata de tribalismo ou de segmentação identitária. Trata-se de trazer ao de cima as contradições para melhor as resolver. Para caminhar verdadeiramente para o universalismo, necessariamente reconhecendo que ele não existe de facto, mas sim como utopia. Não se trata de separatismo — se bem que isso tenha acontecido por vezes — mas de poder circular por múltiplas esferas de interação e política.

Como impedir que a interseccionalidade das identidades redunde em separatismo e na eleição dum plano de identidade como mais importante do que outros? E como impedir que os movimentos (e o pensamento) se fragmentem em bolhas incomunicantes?

Através de políticas de aliança.

As alianças fazem-se com base na crença comum nos Direitos Humanos e no Universalismo (como se pode ver, estes não são deitados fora, ao contrário do que diz quem dicotomiza de modo simplista universalismo vs identitarismo). Mas essa crença comum só é séria e consequente se se reconhecer, de modo realista e crítico (como uma falha que precisa de ser remendada) que as desigualdades múltiplas podem contradizer-se entre si (pessoal e coletivamente) e também que já não podemos viver com uma narrativa que privilegie e dê precedência a uma desigualdade sobre as outras.

Uma aliança é uma negociação constante e assim deve ser, como todas as negociações. Não se trata duma coisa kumbayá e de meninos à volta da fogueira, confundindo o desejo de igualdade com a realidade. Numa política de aliança expõem-se conflitos e tensões, desconfianças, desprezos, desleixos e cegueiras. Mútuos? Sim, mas. Como é uma negociação em que todas as partes concordam com o desígnio do cumprimento dos Direitos Humanos e com o Universalismo como utopia (como ponto de fuga, digamos), primeiro há que identificar as linhas de poder que fizeram e fazem com que o Universalismo não tenha sido atingido para lá do wishful thinking.

E elas, essas linhas de poder, são exatamente as mesmas que identificamos quando combatemos as desigualdades a partir das posições sociais em que estamos: a desigualdade de classe, o sexismo, a homofobia, o racismo.

It takes two to tango. Na realidade, it takes n. E para dançar bem em coletivo é preciso questionar, por exemplo, quem comanda a dança, quem pode dançar com quem, quem pode entrar no salão. Para dançarmos todos juntos, em multidão e perdendo o sentido de si (lembram-se?).

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