Qualquer pessoa envolvida em movimentos sociais pela igualdade, ou versada nas discussões das ciências sociais e humanas sobre o assunto, sabe o que é a teoria da interseccionalidade (e os seus limites, bem como as críticas a ela dirigidas ou as elaborações feitas a partir dela).
Expressemos melhor ou pior as nossas ideias, com maior ou menor irritação ou com linguagens as mais variadas, certo é que qualquer feminista negra, por exemplo, sente que a questão racial não é levada verdadeiramente a sério num meio feminista maioritariamente branco ou num contexto nacional em que as pessoas negras são subalternizadas e as suas experiências de vida invisíveis.
Por “levar a sério” entenda-se compreender verdadeiramente, com saber de experiência feito, a experiência duma vida social inteira de subalternização pela questão racial (questão que não afeta quem não foi por isso subalternizado, uma vez que o racismo não é simétrico, mas produto da racialização histórica de certas populações e pessoas como negras). Apenas um louvável mas genérico “não somos racistas“ não chega. Muitas vezes nem um mais avançado “sou antirracista”.
Outros exemplos, entre n, seriam o da lésbica que vê as suas questões subalternizadas quer num movimento ou teorização feminista maioritariamente heterossexual, quer num movimento LGBT que seja maioritariamente masculino. Etc. Os exemplos multiplicam-se consoante a questão de desigualdade estrutural que queiramos contemplar — de género, sexualidade, etnicidade e “raça”, classe, etc. Quando alguém em posição estrutural subalterna em função duma característica procede a uma crítica da hegemonia, não está a ser racista, sexista, homofóbica, classista. Está a dizer: “Nesta área da minha vida, nesta área em que fui encaixada pelos processos de identificação socialmente construídos, sinto-me de fora”. O que quer também dizer: “noutras áreas não”.
Não se trata de tribalismo ou de segmentação identitária. Trata-se de trazer ao de cima as contradições para melhor as resolver. Para caminhar verdadeiramente para o universalismo, necessariamente reconhecendo que ele não existe de facto, mas sim como utopia. Não se trata de separatismo — se bem que isso tenha acontecido por vezes — mas de poder circular por múltiplas esferas de interação e política.
Como impedir que a interseccionalidade das identidades redunde em separatismo e na eleição dum plano de identidade como mais importante do que outros? E como impedir que os movimentos (e o pensamento) se fragmentem em bolhas incomunicantes?
Através de políticas de aliança.
As alianças fazem-se com base na crença comum nos Direitos Humanos e no Universalismo (como se pode ver, estes não são deitados fora, ao contrário do que diz quem dicotomiza de modo simplista universalismo vs identitarismo). Mas essa crença comum só é séria e consequente se se reconhecer, de modo realista e crítico (como uma falha que precisa de ser remendada) que as desigualdades múltiplas podem contradizer-se entre si (pessoal e coletivamente) e também que já não podemos viver com uma narrativa que privilegie e dê precedência a uma desigualdade sobre as outras.
Uma aliança é uma negociação constante e assim deve ser, como todas as negociações. Não se trata duma coisa kumbayá e de meninos à volta da fogueira, confundindo o desejo de igualdade com a realidade. Numa política de aliança expõem-se conflitos e tensões, desconfianças, desprezos, desleixos e cegueiras. Mútuos? Sim, mas. Como é uma negociação em que todas as partes concordam com o desígnio do cumprimento dos Direitos Humanos e com o Universalismo como utopia (como ponto de fuga, digamos), primeiro há que identificar as linhas de poder que fizeram e fazem com que o Universalismo não tenha sido atingido para lá do wishful thinking.
E elas, essas linhas de poder, são exatamente as mesmas que identificamos quando combatemos as desigualdades a partir das posições sociais em que estamos: a desigualdade de classe, o sexismo, a homofobia, o racismo.
It takes two to tango. Na realidade, it takes n. E para dançar bem em coletivo é preciso questionar, por exemplo, quem comanda a dança, quem pode dançar com quem, quem pode entrar no salão. Para dançarmos todos juntos, em multidão e perdendo o sentido de si (lembram-se?).