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MVA
3 min readFeb 22, 2021
Mark Beard, “Jeff in Pith Helmet”, s.d.

Junte-se uma turma de crianças ou os funcionários de um escritório ou um grupo de universitários e peça-se para desenharem ou recortarem uma representação do “ser humano” para colocar numa sonda espacial, na esperança de esta ser encontrada por extraterrestres.

A maioria desenhará — ou escolherá para recortar — uma figura masculina e (reconhecível como) branca.

Depois pergunte-se às pessoas porque não escolheram a figura duma mulher ou duma pessoa reconhecível como negra, por exemplo.

Haverá três tipos de reação. Em grupos de recorte mais letrado haverá reconhecimento do que está implícito na pergunta e alguns mea culpa embaraçados serão expressados. Em grupos mais representativos da maioria da sociedade haverá respostas honestas que dirão que uma mulher ou uma pessoa negra é demasiado específico. Em todos os grupos, mas sobretudo entre as crianças, haverá silêncio. O silêncio duma porta que se abriu no escuro, não se sabendo bem o que estará do outro lado.

Saiamos da escola, do escritório, da universidade, e passemos para a área da política, da intelectualidade, do comentariado nos media. Neles temos assistimos a sucessivas invectivas contra o que chamam de identitarismo. Veem-no como um perigo para a tranquilidade e unidade das sociedades. Insistem na categoria abstrata de pessoa, cidadão, humano.

São, maioritariamente, homens brancos. Se a questão em discussão for o género, são maioritariamente homens. Se a questão em discussão for etno-racial, serão maioritariamente brancos, e tanto homens quanto mulheres. (Nada impede, porém, que por interiorização da hegemonia, as pessoas específicas “respeitem” a “regra” do universal…)

A questão é esta: não se veem enquanto identidade. Veem-se como neutros universais. Como os desenhos e os recortes das experiências acima.

Há mais que não veem: que o processo que levou à ilusão de neutralidade universal foi e é ele mesmo um processo identitário. Mais: foi e é um processo identitarista, pois construiu conscientemente narrativas, definições, direitos, privilégios, etc., para uma categoria identitária específica, sobretudo através da identificação de outras e da ligação entre essa identificação e a negação de direitos (desigualdades de género, raciais, sexuais, historicamente construídas e por longo tempo interiorizadas). Um processo que fez de muitos humanos humanos específicos e de alguns humanos humanos genéricos.

E há algo que talvez fosse bom o humano que se reclama genérico e universal saber: que quem foi colocado em identidades específicas não retira disso nenhum prazer. Pelo contrário, só retira consequências negativas. E deseja ser parte do verdadeiro genérico e universal que ainda não se atingiu.

Ele não existe só porque está escrito nas Constituições e Leis. Ele foi durante muito tempo escrito nas Constituições e Leis tendo implícito que não se aplicava a toda a gente; e hoje, quando já explicita aplicar-se a toda a gente, ainda há um fosso enorme entre o ideal e o real.

O recurso ao chamado identitarismo por parte de quem não está no neutro universal é um recurso a algo que já existe, não algo que os específicos inventaram. As demandas identitárias são-no para que um dia deixem de ter relevo, para que o universal se atinja.

Para isso é preciso que o suposto neutro universal seja identificado como específico. E é isso que abala e perturba.

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