Do assédio sexual

MVA
4 min readMay 6, 2021
Frida Khalo, “The Broken Column”

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O movimento de exposição de situações de assédio sexual de que as mulheres são vítimas* é das melhores coisas que aconteceram nos últimos anos. Quanto mais mulheres derem o seu testemunho, mais se tornará incontornável que o sistema de género e sexualidade em que vivemos assenta numa desigualdade de poder profunda. Sabemos que essa desigualdade ainda se perpetua nos campos produtivo e da reprodução social, no campo da representação e da visibilidade, mas o seu traço mais terrível está na violência: na violação, na violência doméstica, na violência de género, no assédio sexual.

O simples testemunho, o simples acumular de testemunhos, tem uma enorme força transformadora. Demonstra a existência do problema, empodera as mulheres com voz, amedronta os assediadores, cria vergonha social, transforma as mentalidades, sensibiliza a Justiça.

Perante os testemunhos, já sabemos como são as reações que vêm de dentro do sistema de género e de sexualidade, isto é, dos seus beneficiários e de quem acatou a ordem instituída e a normalizou, naturalizou ou interiorizou: os clássicos mecanismos de culpabilização da vítima; de confusão de conceitos (sedução e assédio); de acusação de intenções ulteriores (vingança, palco); de baralhação de hierarquias morais e éticas (invocar “caça às bruxas”, atitudes “pidescas”, etc.).

Um dos mecanismos mais perversos é exigir a nomeação. “Digam nomes!” — em praça pública, subentende-se. É obviamente uma armadilha, pois uma vez dito o nome, aquele que o exigiu vai invocar a presunção da inocência, vai chamar a atenção para o julgamento em praça pública e a destruição da reputação de alguém eventualmente inocente. E com razão. Não é necessário dizer nomes em praça pública, é necessário dizê-los à polícia e à Justiça.

Mas: para que esta distinção seja efetiva e proteja as pessoas — primeiro as mulheres, estruturalmente vítimas do assédio, e depois a presunção de inocência dos acusados — é fundamental que polícias e Justiça funcionem de facto neste campo. Tornando-se hospitaleiras para as mulheres, de forma publicitada e pró-ativa, processando celeremente os processos, e com base em leis que simultaneamente reconheçam o problema do sexismo estrutural e o respeito pelo estado de direito. E que ajudem a que haja mais denúncias, pois a falta destas é um problema quantitativamente bem maior do que os poucos casos de denúncias falsas.

O problema é que essa justiça não existe. Existe em princípio, não existe na realidade. Queremos que exista, mas ainda não existe e é refém dos princípios de desigualdade do sistema de género e sexualidade em que ainda vivemos.

A montante e a jusante de tudo isto, dos riscos e ambiguidades que podem ocorrer, mesmo que minoritariamente, nas denúncias, o mais importante é o Testemunho e o movimento é imparável. Testemunhos de situações de assédio, a sua publicitação e divulgação, são o grande passo para a transformação e até para a cura — a individual, que a social precisa de muito mais revolta e intolerância da parte de todas e todos nós.

2

Sou homem. Era adolescente. Não me recordo exatamente com que idade. Estava à boleia — sem dinheiro para apanhar um transporte, e num ermo. Um carro pára. Entro. O condutor é um homem. Mais velho do que eu. Minutos depois, as insinuações da sua conversa tornam-se óbvias. Pouco depois pousa a mão na minha coxa e acaricia-a. Tiro-a e digo “Não, não quero”. Tinha o coração acelerado, senti calafrios. Insistiu, colocou a mão na minha braguilha e disse “Sei que gostas, vá lá…”. Tornei a dizer “não”, insisti para que parasse o carro, ele insistiu, gritei que parasse, abrandou e assim que pude saí do carro, ainda ligeiramente em andamento.

Que se passou ali? Não foi uma situação de poder laboral ou hierárquico, onde o assédio assume um extra de gravidade. Mas foi uma situação de poder: eu tinha pedido um favor, tinha uma necessidade (a boleia, para mais numa zona quase desértica); ele satisfez-me essa necessidade e sentiu-se investido do direito a cobrar o serviço. Ele não obedeceu ao meu “não”, presumiu que o seu desejo era também o meu desejo, projetou-se como sujeito em mim enquanto objeto. E, por outro lado, a situação só não foi pior — de violência física e sexual mais extrema — porque ambos éramos homens. Eu, inclusive, mais alto e forte do que ele.

Este é um testemunho para repetir a manobra de diversão do argumento “também acontece aos homens”?* Não — e nunca compreenderei verdadeiramente, no corpo e nas emoções, o que é o sofrimento causado nas mulheres pelo assédio. É para mostrar como na estruturação de poder desigual do nosso sistema de género e sexualidade, a predação faz-se sobre as mulheres e também sobre os jovens homens, a reciprocidade e o consentimento são mandados às urtigas, e a recompensa ou a punição são as armas implícitas. Este não é um testemunho sobre “acontece a todos”, é um testemunho sobre a masculinidade: a da predação e… a que me permitiu salvar-me.

*[Também os homens, claro. Mas as vítimas são — esmagadoramente — as mulheres. Não há aqui simetria, como não há simetria no sistema de género e sexualidade em que vivemos. Mulheres hetero e mulheres lésbicas são o alvo do sexismo, do machismo, da misoginia; seguem-se os jovens homens, gay ou hetero; por fim, residualmente os homens hetero. O número de mulheres que, no meu círculo de relações, revelaram, ao fim de meses ou anos, que foram violadas (às vezes em meio familiar) é absolutamente assustador. E assédio sexual no trabalho… é mato]

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