Um comentador de direita escrevia, a propósito da polémica em torno da educação para a cidadania nas escolas, que não é admissível que se transmita às crianças que o género e a sexualidade são construções sociais, supostamente desmontáveis pelos indivíduos a seu bel-prazer.
Um outro, não de direita mas acérrimo defensor das normativas do universalismo republicano, vociferava em tempos a favor dos polícias e autarcas que, no sul de França, proibiram o uso de burkinis, argumentando que as regras islâmicas são opressoras das mulheres e criticando quem relativiza culturalmente esse facto.
Algum hipotético militante do Chega dirá um dia, perante alguma câmara de televisão, que toda a gente tem direito à sua cultura e religião mas que para a viver em pleno deverá ficar na sua terra e que, ao deslocar-se, deverá integrar-se na cultura que o recebe. (Pensando bem, não só um hipotético militante do Chega diria algo assim…).
Três exemplos de erros em torno das noções de construção social, de relativismo cultural, e da própria cultura. Erros que terão origem na forma como as ciências sociais e humanas divulgaram o seu conhecimento, não explicando conceitos com exemplos e linguagem acessível? Erros que terão origem em conceitos que vingaram numa época mas que, em rigor, não são hoje subscritos por essas ciências, tendo no entanto passado para o senso comum? Muito provavelmente sim. Mas vai-se sempre a tempo de esclarecer.
“Construção social” não significa nem invenção nem mentira. Significa, sim, que nos fazemos pessoas dentro de normas, tabus, e incentivos que nos pré-existem e nos são apresentados como naturais. (“Natural” não significa biológico, mas sim uma interpretação social e cultural que busca no biológico a legitimação. Nem a biologia nem a natureza dizem o que quer que seja sobre, por exemplo, o uso de saias ou calças. Em rigor, nada podem sequer dizer, já que não são agentes). Como qualquer crença ou hábito, as construções sociais mudam mais lentamente do que o tempo de vida dos indivíduos e estes não têm a capacidade de se reinventar de forma absoluta. Muita gente se engana quanto a isto. Enganam-se muitos dos que se revoltam contra a iniquidade de algumas construções sociais e julgam poder recriar-se totalmente e enganam-se os que vivem aterrados com a hipótese de tal acontecer à sua volta.
“Relativismo cultural” refere-se, na antropologia que o inventou, a um método e não a uma moral. Trata-se de fazer o esforço de compreender realidades culturais diferentes da do observador. Compreendê-las, no sentido de as tornar inteligíveis e levando a sério, como uma versão de humanidade, o ponto de vista de quem a elas pertence. Não se trata, pois, de relativismo moral, de uma afirmação de “tudo se equivale e aceita”. E não é necessário, de todo, discutir o assunto a partir de um debate nós/eles, de uma comparação entre “culturas” e muito menos de ideias etnocêntricas de progresso. Basta perceber que nenhuma sociedade — seja um grupo de Khoisan no Kalahari ou uma Nova Iorque de Wall Street e Bronx — é coesa e concordante. Todas são permeadas por divisões de estatuto, poder e prestígio, seja por via do parentesco, do género, das classes, das castas ou qualquer outro nível de diferenciação e/ou de desigualdade. Logo, nunca há uma versão canónica da “cultura”, esta está sujeita a interpretações e contestações constantes, bem como a mudanças, muitas vezes exógenas mas também endógenas. A constante mudança é mesmo a condição da vida “em cultura”. Viver em sociedade, em qualquer uma, significa um debate constante sobre as regras e as normas, sobretudo porque estas são cristalizadas temporariamente pelos segmentos que mais poder tiverem.
É também por isto que em situações de grande mobilidade, como o período histórico que vivemos, a perceção da diferença cultural escamoteia simultaneamente a diversidade e desigualdade internas a um grupo que chega “de fora” e a diversidade e desigualdade internas ao grupo “de dentro”. A figura do estado-nação com que ainda vivemos gera uma ilusão de unicidade cultural que não existe, e projeta nas realidades culturais diferentes o modelo do estado-nação (um “eles” generalizado, com a “sua terra”). Ela foi temperada por políticas multiculturais que, na sua esmagadora maioria, perpetuaram aquelas noções separatistas, apenas com a diferença da coexistência no mesmo território; ou foi eclipsada pelo formalismo do universalismo republicano que decreta a invisibilidade das diferenças e desigualdades.
Se olharmos para os fenómenos sociais e culturais com uma perspetiva de poder, percebemos melhor como as construções sociais são versões da cultura que dependem da relação de forças; que, e nesse sentido, elas são relativizáveis pois são transformáveis; e que a “cultura” não é uma coisa, transportada por pessoas de um grupo, mas sim algo em constante disseminação, questionamento e transformação, e algo de profundamente ideológico. Fulcral é o questionamento de quem se encontra em perda, a erosão dos poderes, e a transformação que leva a novas construções sociais.
O desespero de quem representa algum poder ou privilégio nalgum momento histórico fica bem patente quando ataca a noção de construção social, quando essencializa uma cultura (a “sua” e a do “outro”), quando a retrata como homogénea, ou quando estabelece fronteiras rígidas entre “culturas” ou exige “integração”. Desespero, porque estas atitudes só podem surgir quando as mudanças e as contradições já estão em marcha ou se intensificaram — não necessariamente todas “boas” ou “progressistas”, that’s not the point, pois o reacionarismo pode ser tentador para quem está em perda e se refugia na construção social, por exemplo, do estado-nação ou da unicidade cultural.
Como se viu com o truque retórico da “ideologia de género” — aproveitando-se do pensamento autocrítico das ciências sociais para dizer que o que elas produzem é ideológico (grande novidade…) e que por isso é mau (este é que é o twist…) — o reacionarismo elegeu as ciências sociais e humanas no seu inimigo figadal, um gigantesco desmancha-prazeres.