Considere-se uma esplanada…

MVA
5 min readMay 13, 2023

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É óbvio que fumar faz mal à saúde. Sobretudo a de quem fuma, mas também, se bem que de modo diferente, a de quem recebe o fumo passivamente. É óbvio que deve ser proibido fumar em locais fechados que não tenham um espaço próprio para o ato. É óbvio que as embalagens de tabaco devem conter avisos sobre os riscos do consumo. É óbvio que a venda deve ser proibida a menores. É óbvio que os produtos devem ser taxados. É óbvio que deve haver campanhas das autoridades de saúde promovendo a cessação tabágica. É óbivo que o estado deve oferecer programas de cessação. É também óbvio que o fumo do tabaco pode incomodar quem, além da questão sanitária, não goste do cheiro (este aspeto foi diminuído fortemente, se bem que não eliminado — a chacun son nez — com o tabaco aquecido; e também ainda não há evidência científica suficiente quanto aos efeitos na saúde, apesar de não conter alguns dos componentes nocivos dos cigarros normais).

Surge agora uma proposta de proibição de fumar em espaços públicos que não são fechados: inclui a proximidade, na via pública, de edifícios públicos, faculdades, etc., e também esplanadas cobertas — o que não é, obviamente, o mesmo que “esplanadas” fechadas (em rigor, “marquises”)(1). Aqui, as coisas tornam-se absurdas e aproximam-se da questão que me interpela. Não se trata tanto da deriva para o estado higienista, que pretende controlar as escolhas individuais e livres das pessoas, ainda que essa seja, sim, uma questão grave e importante. Foco-me mais numa questão cultural, no sentido socio-antropológico: a confirmação de um processo que já vem de trás, a saber, a criação da figura do fumador como… imoral.

[“Imoral” não só porque faz uma coisa “feia” e “suja”, mas porque não “se cuida”. Não cuida do seu corpo-templo, como os gordos que não se cuidam e são “nojentos”, ou os promíscuos que se expõem a doenças e a transmiti-las. Há toda uma história antiga nisto, religiosa mesmo, agora transformada em higienismo científico pela mão do Estado, às vezes chegando ao absurdo — vide EUA — de achar que seguros e estado não devem pagar pelo tratamento de doenças adquiridas pelo mau comportamento de mentes imorais]

Esta criação de uma identidade imoral já tem alguns pergaminhos. Lembro-me de a ver começar nos EUA, nos anos setenta, quando em Portugal se estava bem longe disso. Filthy habit, era, e é, a expressão que se ouvia. Reparem como a expressão nada tem a ver com saúde, nem com o direito a não ser incomodado pelo fumo. Ela é, sim, uma acusação de sujidade do fumador. Algo de semelhante se vê, dando um salto no tempo e no modo, nos aplicativos românticos e sexuais, onde muitos perfis escolhem um símbolo de “proibido fumar” nas suas preferências — antes ainda de, ou mais do que, proclamarem preferências por traços de personalidade, tipos físicos ou atos sexuais. Ou, ainda, nos avisos que vemos por todo o lado, em que, em vez de se ler “proibido fumar”, se pode ler “Não fumadores”. Isto é, o que se recusa não é o ato, é o tipo de pessoa. Pessoa suja, com filthy habits. Chega-se ao ponto de se ouvir algo de semelhante dito por pessoas que são libertárias noutras áreas da vida, que defendem direitos e liberdades e escolhas diversas noutros planos. Este facto é, aliás, relevante, pois coloca a construção do fumador-imoral num plano que está para lá da oposição entre conservadorismo e progressivismo.

E, agora, o exemplo para amarrar as pontas do argumento. Considere-se uma esplanada como a da foto. Alguém fuma um cigarro de tabaco aquecido. Passa a ser proibido fazê-lo. Qual a justificação sanitária? Praticamente nenhuma. Sobra a justificação moral, neste caso moralista.

Gerir o uso e usufruto do espaço público será sempre difícil. Nunca será perfeita essa gestão, é mesmo uma das questões centrais e não resolvidas do que é viver em sociedade (só resolúvel em ditadura absoluta). Lembro-me sempre do rapaz que, estando a falar ao telemóvel num cinema, e tendo sido abordado por mim, respondeu que estava num espaço público e que fazia o que queria…. O rapaz estava, obviamente, a não perceber o que é partilhar um espaço com outros desconhecidos. Assim como alguém que fumasse dentro de, por exemplo, um edifício duma faculdade, estaria a cometer um atentado à convivência num espaço partilhado.

Mas… a esplanada? Para complementar o meu argumento, uma lista curta de coisas que outros fazem na esplanada da foto e que me incomodam ou que acho feias, sem achar que os praticantes são imorais: ouvir músicas no telemóvel com o volume alto e sem fones; ter conversas aos gritos; manifestar embriaguez; ter consigo cães que ladram incessantemente; tossir sem tapar a boca; tratar os empregados com autoritarismo e desprezo; usar perfumes cujo cheiro me incomoda; vir de carro para a esplanada, estacionando em segunda fila; as buzinadelas de quem quer sair; deitar ao chão ou deixar lixo na mesa que se acabou de usar (e, sim, esse lixo pode ser um cinzeiro cheio, quando há caixote do lixo ali ao lado). A lista poderia continuar. Mas a questão é esta: vou propor a proibição de algum destes atos ou atitudes? Não. Espero que se cumpra um contrato social implícito, envergonhando quem os pratica? Sim. Que se exerce através do autocontrole ou, alternativamente, do respeito pela chamada de atenção por terceiros? Sim. Ocorre-me definir estas pessoas como sendo ontologicamente sujas, feias, imorais, característica que se manifestaria nos seus atos censuráveis? Não.

O problema com a extensão das proibições do fumo é que elas nunca pararão, até à proibição total como em tempos para as drogas. Porque o motor do proibicionismo já não é nem a saúde nem o respeito pela partilha do espaço público, é mesmo a criação moralista de identidades monstruosas.

Falamos daqui a 50 anos para vermos se tenho ou não razão (ups, não, já cá não estarei, tabaco or no tabaco).

(1)Idem para as praias. Se a distância em relação a outros banhistas for significativa, não faz sentido proibir. Se as beatas forem guardadas para serem levadas para o lixo, idem.

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Tentando desempacotar coisas desde 1960

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