Há poucos anos, brasileiros ou americanos no campo democrático e constitucional não achavam possível que Bolsonaro ou Trump fossem eleitos. Há poucos anos, os portugueses do mesmo campo congratulavam-se com a exceção portuguesa — a ausência de extrema-direita no parlamento. Hoje, esses brasileiros e americanos sentem-se cilindrados pelo triunfo das forças das notícias falsas, da mentira repetida até se tornar verdade, da relativização da democracia e da igualdade, do incitamento ao ódio.
Não sabem como articular uma resposta, pois aquelas forças alteraram os termos do debate. Mais: elas eliminaram a ideia mesma de debate, das suas regras e dos seus palcos. As denúncias de más práticas não parecem surtir efeito; a judicialização tão-pouco; até a vergonha (“Mas eles não têm vergonha?!” Resposta: não) não funciona como mecanismo de contenção. Como parte do sucesso da extrema-direita se deve ao apoio popular (lá iremos), nem sequer a revolta resulta — manifestações e protestos acabam por ser protagonizados por camadas que não as populares (com a exceção das revoltas americanas contra o racismo).
A resposta que sobra é democrática e eleitoral. Só através do voto estas personagens do populismo de extrema-direita do século 21 podem ser afastadas. Mas esta via é vivida com um sentimento de urgência: tirá-los do poder antes que eles eliminem os mecanismos democráticos. Algo que estão fazendo e continuarão fazendo, não através da instauração de ditaduras à maneira do século 20, mas de ditamoles do século 21, instauradas passo a passo através da contaminação dos procedimentos democráticos pela suspeita, pela deslegitimação, pela manipulação de regras, pelo boicote.
E em Portugal? Não só a exceção portuguesa chegou ao fim, como nos encontramos na fase em que corremos o risco de André Ventura ter uma vitória política nas eleições presidenciais (tudo acima de 5% sê-lo-á) e de o Chega criar um grupo parlamentar robusto (na quantidade…) nas próximas eleições legislativas. Para mais numa situação de pandemia e da consequente crise económica e social profunda. A ansiedade é palpável no campo democrático e constitucional.
Uma característica da ansiedade é o sentimento de impotência — sentimento de que este texto padece também. Bem como a sensação de que os procedimentos habituais de resolução de problemas não funcionam. O debate não resulta, as denúncias jornalísticas ou judiciais parecem não resultar, idem para a desmontagem de argumentos e propostas. Até a demonização não resulta (e, nisto, Ventura é o verdadeiro cínico oportunista, pois ele sabe manipular a imagem do “sô doutor” moderado, sabendo que em Portugal o empresário cruel ou o “coronel” iletrado não resultariam). Porquê?
Um conjunto de explicações já foram avançadas para o crescente sucesso do populismo de extrema-direita. A perda de soberania nacional, a desconfiança face à classe política, os efeitos do capitalismo financeiro e da globalização, a manipulação das redes sociais, e tantas, tantas outras que as boas ciências sociais e políticas vão explicando e a cuja lista vos — e me — poupo. Mas poucas são as explicações para a dificuldade em conter ou combater aquele campo. Creio que uma possível razão para o seu sucesso, como para a dificuldade em o contrariar, é que a política do populismo de extrema-direita é uma política do “senso comum”.
“Senso comum” é uma expressão complicada e arriscada. No seu sentido quotidiano — de senso comum… — quer dizer algo como “bom senso”. Mas no seu sentido sociológico quer dizer, grosso modo, isto que a Wikipedia (sim, sim, já se pode usar) nos diz: “Senso comum ou conhecimento vulgar (…) descreve as crenças e proposições que aparecem como “normais”, sem depender de uma investigação detalhada para se alcançar verdades mais profundas (…). O senso comum é a forma de conhecimento mais presente no dia a dia (…), [é] uma forma de pensamento superficial, ou seja, não está preocupado com causas e fundamentos primeiros de algo, apenas faz afirmações, irrefletidas, imediatas. Isso não quer dizer que não haja conhecimento científico entre essas pessoas ou que não haja senso comum no âmbito científico.”
O truque político de André Ventura e do Chega é recorrer ao senso comum (que Ventura, obviamente, não partilha), tal como ele surge refletido em certa comunicação social ou em certos murais de redes sociais: nenhum ataque ao sistema do capitalismo financeiro ou bancário (muito difícil de compreender e sem figuras individuais identificáveis), mas muito a uma generalizada “classe política”; nenhuma crítica das relações e desigualdades de classe, mas muita revolta com “a corrupção” de quem ocupa lugares de decisão ou acesso a recursos; e um privilegiar de agendas que mobilizem o sentimentos nacionalistas ou racistas — quer entre todas as camadas sociais que veem as visões críticas da História como uma ameaça identitária, quer entre quem tem no privilégio branco o último recurso de superioridade social face a afro-descendentes e ciganos supostamente privilegiados pelos apoios do estado social e ameaçadores da identidade nacional.
Como a defesa de visões de diversidade, multiculturalidade ou antirracismo, bem como as análises político-económicas sobre as classes e o capitalismo, funcionam ao contrário do senso comum e são avançadas por setores mais letrados da sociedade, elas são vistas como um ataque ao “povo”. Ataque perpetrado pelos mesmos que são recorrentemente suspeitos de corrupção, compadrio ou cunha, já que a proximidade entre elites intelectuais e políticas é grande. Os inimigos que o populismo de extrema-direita cria nada têm a ver com as verdadeiras forças que perpetuam as desigualdades que transformam os detentores do senso comum em vítimas. É neste sentido que o populismo de extrema-direita é um instrumento perversamente útil para a perpetuação das desigualdades. É a direita sem vergonha.
Desmontar isto não é fácil. Não se explica ao senso comum que ele é… senso comum. É como tentar explicar a um mau aluno porque teve má nota. Primeiro é preciso ensinar “as bases” que permitam ao aluno vir a distinguir entre senso comum e pensamento analítico e crítico, ao ponto de não ser possível sequer ser… mau aluno. Toda uma tarefa. Que, na política, não se coaduna com o tempo eleitoral. Mas, e antes que surja a acusação (compreensível) de este ser um texto de um elitista chamando o povo de estúpido, isto: nem o senso comum é sinónimo de estupidez (apenas de efeito de hegemonia), nem o sucesso de um Chega será o resultado da representação quantitativa de um “povo do senso comum”. Creio mesmo que os votos no Chega serão maioritariamente votos de uma direita cansada das derrotas dentro do consenso constitucional e de eleitores despolitizados e com reações emocionais de irritação difusa. Sobretudo, um “cansaço de abril”. Setores conservadores cansados de “igualdade”, “direitos” e “identidades”.
Por pouco eficazes que pareçam, denúncias, desmontagens e até demonizações podem e devem continuar a ser feitas. Mas no campo da política, e no ciclo eleitoral, só há três formas de conter as aVenturas trumpianas e bolsonaristas à portuguesa: a direita constitucional traçar uma linha vermelha face ao Chega e dizer explicitamente onde e no quê a traça; a esquerda moderada promover mais e mais a igualdade de oportunidades e conter a corrupção no seu seio (aprendamos com o Brasil, sim?); a esquerda mais radical promover um populismo que redefina os alvos certos, transformando, no senso comum, o ressentimento em revolta.
Mas este é um texto apreensivo, sem soluções, e doente com o vírus da perplexidade e da impotência, que já fez a sua razia em dois países da minha vida, o Brasil e os Estados Unidos. “Menos mal que nos queda Portugal?”, como se dizia num outro, o Estado Espanhol? Não sei. Só sei que temos de fazer por isso, e com cabeça.