Aproxima-se o Natal. Semi-confinado em casa, procedo a arrumações de outono (bem mais necessárias, pelo fechamento invernal em casa, do que as de primavera). Sofrendo um pouco de obsessão compulsiva, tenho horror à acumulação de coisas e contribuo profusamente, não sem sentimento de culpa, para a pouco ecológica produção de lixo. Mas há sempre duas ou três coisas que, no frenesi da arrumação, me fazem parar. Gosto dessa sensação: “não, isto tenho de guardar, isto não pode ir fora”.
Foi o que aconteceu com este postal de Boas Festas que devo ter recebido em 1982 ou 1983. Foi-me enviado por um amigo do Faial, nos Açores, caçador de baleias (de cachalotes, mais exatamente). Tinha sido um dos meus interlocutores (na altura dizia-se “informante”, enfim, abaixo verão como esta crónica é sobre a mudança dos tempos…) e do meu amigo João Carlos Lopes na pesquisa que fizemos no final da licenciatura em Antropologia. A pesquisa foi sobre a caça artesanal da baleia nos Açores, no último ano em que ela foi permitida. Seria o João a fazer a sua monografia final de licenciatura sobre o tema, já que não permitiram um trabalho a 4 mãos, mas ali num caixotezinho estão vários diários de campo recheados de entusiasmo e fascínio juvenis, bem como de memórias quentes e boas, descobertas, choques e epifanias.
O postal é um susto, bem sei. Deveria incluir um aviso aos espectadores mais sensíveis. Um susto sobretudo para as nossas mentalidades de hoje, em 2020. A justaposição da imagem duma baleia, arpoada e sangrando, à imagem infantil e bonacheirona dum Pai Natal, tem algo de perturbador. Não revelo o texto do baleeiro no verso, mas ele é carinhoso, solidário, repleto dos bons sentimentos natalícios — e não estou a ironizar. Reler o texto, na sua caligrafia esforçada e cuidada, fez-me sentir saudades. Como vão estas coisas juntas, perguntamo-nos hoje? Como podem estas coisas ir juntas?
Isso só se compreende convocando duas dimensões. Para a primeira já o trabalho de campo nos tinha apontado então; a segunda só o olhar contemporâneo, de hoje, pode esclarecer.
A primeira. Como caçadores artesanais — meia dúzia de homens num bote — os baleeiros encaravam a caça como uma atividade arriscada e nobre. Na época, a atividade já não era uma necessidade económica (embora fosse um complemento não desprezível), mas havia sido. Havia sido sobretudo para as gerações anteriores, pais e avós dos baleeiros dos anos 80. Ao continuarem a atividade, o sacrifício dos seus antepassados era homenageado e continuado nos corpos e pessoas dos baleeiros, fazendo parte do seu sentido identitário, enquanto pessoas e enquanto coletivo. Como caçadores artesanais, respondiam às críticas ambientalistas, conservacionistas e éticas dizendo que só se caçava uma mão-cheia de animais por ano, ao contrário da indústria baleeira, como a japonesa (que continuou a operar depois da proibição mundial). Como caçadores artesanais, naquele contexto e com aquele passado, a sua relação com a baleia era uma relação, nas suas palavras, cheia de respeito e dor — nunca de bravata, de desprezo, de qualquer afirmação de superioridade humana. Testemunhámos muito medo, tristeza e melancolia. Algumas analogias com outras atividades cinegéticas ou com formas ritualísticas e de espetáculo das mesmas — penso na caça em geral e nas touradas em particular — são inevitáveis.
Neste ponto sei que toco pontos sensíveis. Defendo princípios de enorme dúvida ética sobre a caça e sobre as touradas, ao mesmo tempo que sei que os praticantes veem a coisa de outro modo (desde logo por esta experiência açoriana dos inícios dos anos oitenta e, depois, pelo trabalho de campo no Alentejo nos anos noventa, onde a tourada era uma parte importante das identidades locais). Não deve haver um caçador ou um toureador que despreze os animais e que não sinta a ambiguidade ética. Acho que é mesmo esse sentimento que buscam. Se concordamos, como comunidade, que estas atividades prossigam ou não, é outra história.
Este ponto sensível leva à segunda dimensão: vivemos num mundo diferente. Em apenas menos de 30 anos incorporámos o conceito de direitos dos animais, desconstruímos o antropocentrismo, e concebemos o planeta como uma casa multiespécies em igualdade ética. (E também desconstruímos o género, pois há que sublinhar a masculinidade intrínseca a estas atividades). Não é coisa de pouca monta, do ponto de vista civilizacional. Embora o uso desta expressão — civilizacional — seja tudo menos neutro, pelo que comporta de remissão para a suposta selvajaria de atividades como a caça à baleia….
No entanto, e a não ser, reconheça-se, na crítica vegana radical, não superámos contradições nem resolvemos o problema. A destruição antropocénica dos habitats naturais e a produção industrial de animais e seus produtos estão aí para o demonstrar. Pelo caminho, praticamente perdemos a capacidade de perceber que aquele postal que recebi foi um gesto de partilha humana de um sentimento que o emissor via genuinamente como bom. E que, como dádiva, eu recebi como bom. Uma estória sobre a vida e a morte e o lugar do humano num bote, no alto mar, com um arpão na mão face a um majestoso mastodonte.
Preferiria uma realidade cultural menos Hemingwayana e mais contemplativa e “pacifista”, em que, por exemplo, os locais tivessem uma atividade tradicional de contemplação mística das baleias passando ao largo? Sim — e, de novo, não estou a ironizar. Eles não prefeririam, não em exclusivo — já que contemplar baleias, isso faziam-no, desde logo a partir dos postos de vigia.
Mas não havia nada de falso ou cruel em homens como o que me desejou Boas Festas. E é por isso que guardo o postal e o partilho, em 2020.