Além de Belém

MVA
3 min readSep 8, 2020

E Ana Gomes é candidata. Posto isto, onde e como estamos?

Percebe-se a utilidade da verdadeira aliança entre Governo e Presidência da República nos últimos largos meses. Já fora graças a isso que a experiência da geringonça funcionara e, depois, terá sido útil para todos nós enquanto comunidade no começo da crise da pandemia.

Esta utilidade não pode é ser vista como potencialmente estrutural, como algo desejável para a nossa democracia. Os governos são feitos a partir do parlamento eleito nas Legislativas, o presidente é eleito nas Presidenciais. Se o programa dos governos reflete, além das escolhas ideológicas de fundo, o plano de ação para a gestão da coisa pública por 4 anos, os candidatos a presidente refletem sobretudo o primeiro aspeto, o ideológico. Mesmo com os poderes que o presidente tem em Portugal, ele ou ela representa uma ideia do que deve ser o país, uma visão do mundo, uma forma de estar no mundo.

É, por isso, no mínimo estranho que o maior partido português, e partido de governo, não tenha um candidato da sua área e apoie tacitamente, sem o explicitar, o candidato que se propõe a reeleição e que representa um campo ideológico distinto. Reconheça-se que ele é idiossincrático dentro desse campo, mas não deixa de o representar.

As idiossincrasias do atual presidente e candidato à reeleição, bem como a sua aliança com o governo, estão na base, aliás, do afastamento de setores da direita em relação a ele. Temos, portanto, uma direita que hesita face ao seu candidato natural, e uma esquerda (especificamente o PS) que se demite da luta. Nem uma eventual atitude do tipo “a presidência não interessa” teria justificação, por ser cínica e anti-democrática.

Sentindo-se ideologicamente órfã de Marcelo Rebelo de Sousa, certa direita sentir-se-á tentada a votar no oportunista André Ventura. Prenuncia-se já que a sua votação será o passaporte para uma consolidação da sua área, facto perigosíssimo para a nossa democracia. E à esquerda do PS, as candidaturas partidárias continuam uma infeliz e algo tosca tradição de “apanhar boleia” das presidenciais para marcar o espaço e o tempo políticos, sem pensar estrategicamente em candidatos agregadores.

Eis senão quando surge Ana Gomes. Reconheço-lhe imensas qualidades de coragem, de assertividade, de posicionamento à esquerda, de inteligência e conhecimento, e de revolta com injustiças. Espero pela sua declaração de candidatura, bem como pela manifestação dos principais apoiantes para assumir uma posição mais clara.

Mas vejo, à partida, dois riscos potenciais. O primeiro é o conflito e a cisão dentro do PS, que poderia prejudicar o futuro de uma governação à esquerda, sobretudo em tempos de enorme crise social e económica. O segundo é tornar-se numa resposta simétrica a Ventura — coisa que este, aliás, deseja, pois naquele patamar eleitoral (um campeonato de “segunda”, sem desprimor para Ana Gomes) uma vitória sua seria simbolicamente interpretada como uma vitória da extrema-direita sobre a esquerda. Tudo será feito para provocar afirmações e linguagem populistas por parte de Ana Gomes, para gáudio de quem quer estabelecer — e já estabeleceu — falsas simetrias entre populismo de direita e um suposto populismo de esquerda.

Mas tem culpa, ela? Não. E o seu gesto é digno e corajoso. Imagine-se, considerando os juízos que fiz acima, se não se candidatasse. Culpa, dúbia dignidade e calculismo sem coragem caracterizam, sim, a decisão do PS em não criar uma candidatura na sua área e agregadora das esquerdas. Se o PS vê MRS como um tampão conservador contra a extrema-direita — o que se compreende, mesmo sendo uma postura defensiva — como não cumpriria um candidato seu a mesma função? E a disputa pela vitória seria sempre entre esse candidato e MRS. Este teria um apoio mais explícito da direita não-extremista e Ventura apanharia os amendoins sobrantes.

MRS ganhará, o que parece deixar meio país descansado. Mas como será o day after para a esquerda, para a direita e, agora, para a extrema-direita, no caminho para as legislativas em tempos de profundíssima crise social? Veremos a diferença que Ana Gomes poderá fazer nestes tempos sombrios.

Continua nos próximos episódios….

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