A lista que guardo na mochila para quando me pedem para falar de Palestina/Israel*
1. A Europa construiu-se com base em duas desidentificações: criando um inimigo externo — o mundo árabe-muçulmano; e um inimigo interno — os judeus. Arabofobia, islamofobia e antissemistismo são constituintes históricas da Europa. Estas discriminações nunca desapareceram; em certos períodos reforçam-se; afetam diferentes setores políticos e ideológicos. Devemos começar por pensar sobre nós quando pensamos sobre o Médio Oriente.
2. O sionismo, enquanto projeto de transformação da judeidade em nação, é um produto do nacionalismo do século XIX. Foi, nas suas várias versões e correntes, o projeto de judeus europeus formados na ideia de estado-nação e como forma de escapar ao antissemitismo, ao falhanço da “integração” universalista nos seus países, e/ou de prosseguir ideais socialistas utópicos.
3. Como europeus da época, e fossem eles mais ou menos religiosos, mais ou menos seculares e socialistas, os sionistas viram a Palestina Otomana como colonizável, recorrendo à mitologia e à história das origens, partilhando a visão colonial europeia que viria a estabelecer os mandatos britânico e francês no Médio Oriente do pós-Primeira Grande Guerra. O estado de Israel foi construído de facto através do que hoje alguns autores designam por colonialismo de assentamento.
4. O horror absoluto do Holocausto (por vezes esquecemos como as maiores violências foram cometidas na Europa…) confirmaria, do ponto de vista sionista, a necessidade do estado. A sua declaração em 1948, sobre estruturas para-estatais já estabelecidas pelas migrações/colonizações desde a transição do XIX para o XX, geraria a Naqba, ou expulsão dos palestinianos para o exílio, e abriria as portas de Israel a todos os judeus do mundo. O “direito de retorno” e a própria existência de Israel viria a mudar definitivamente a judeidade, que deixou de ter de ser diaspórica. Independência de Israel e Naqba palestiniana criaram um conflito pela terra e pela legitimidade da sua posse. Conflito assimétrico, entre um estado e uma população.
5. Os palestinianos passaram do domínio otomano, para o mandato britânico e para o domínio israelita e construíram uma identidade nacional em grande medida como resultado da sua expulsão, refúgio, exílio e ocupação. Limitados à Cisjordânia e Gaza, refugiados no Líbano, Síria e Jordânia, e com sucessivas gerações espalhadas pelo mundo, além dos palestinianos de ’48 (os que ficaram em Israel como cidadãos com direitos limitados), ficaram dependentes de três forças nocivas: o poderio militar de Israel; a inação ou hipocrisia de muito países árabes; a não implementação, pela comunidade internacional, das decisões da ONU sobre o estabelecimento de dois estados.
6. A situação agravou-se, ao longo dos anos, sobretudo com dois fatores: a transformação de Gaza numa prisão a céu aberto; a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental por um crescente número de colonatos israelitas e com violência policial e militar; a reação de setores palestinianos que optaram pela violência de atentados. Para todos os efeitos práticos, e depois do falhanço dos acordos de Oslo, a solução dos dois estados tornou-se inviável, substituída por um só estado mas com duas situações: cidadania para os judeus em Israel e ocupação militar e colonial nos territórios palestinianos.
7. A deterioração da situação nos territórios palestinianos e a dependência da Autoridade Palestiniana de Israel, levaram à decadência da base secular (percentagem significativa de palestinianos são cristãos) e socializante das lideranças palestinianas e ao crescimento de correntes islamitas, como o Hamas, em conexão com transformações internacionais mais vastas, das intervenções ocidentais no Médio Oriente ao crescimento do fundamentalismo islâmico.
8. Simultaneamente, em Israel o crescimento da população religiosa substituiria a corrente sionista socialista e secular dos fundadores do estado, e a cultura de cerco, as consequências violentas da ocupação através de atos terroristas contra cidadãos em Israel, e a militarização da sociedade levariam à hegemonia da extrema-direita, de fundo xenófobo, racista e messiânico-fundamentalista. (Israel é uma sociedade muito diversa, e com uma contradição entre o projeto dos fundadores, asquenazitas europeus, e a maioria sefardita/mizrahi, uma divisão com contornos de classe, de etnicidade / racialização e de religiosidade versus secularismo).
9. A situação conjuntural do momento configura um confronto entre o regime de extrema-direita, arabófobo e islamofóbico de Netanyahu, e o regime islamita e antissemita do Hamas em Gaza. Milhares de judeus em Israel e no mundo não se identificam com o primeiro e milhares de palestinianos na Palestina e no exílio não se identificam com o segundo.
10. Já só uma intervenção da “comunidade internacional” pode evitar futuros massacres macabros e antissemitas como os de 7 de outubro de 2023; massacres contrários à ordem humanitária internacional como a intervenção de Israel em Gaza; evitar uma escalada internacional; e assegurar caminhos para uma solução.
11. E nós, do lado de cá? Precisamos de compreender o efeito ventríloquo da situação em Palestina/Israel: como os posicionamentos remetem para questões históricas profundas, para sentimentos de culpa, para binarismos simplistas, para, no fundo, a(s) política(s) interna(s) das sociedades europeias. Palestina/Israel funciona — não só, mas também, poi existem solidariedades desinteressadas — como proxy de processos identitários, políticos e ideológicos europeus. Não é uma questão de somenos, pois tem efeitos nas ações, ou falta delas, bem como na linguagem e retórica usadas, face à situação em Palestina/Israel.
12. O futuro distópico: a conquista de jure, e já não só de facto, de todos os territórios palestinianos sobrantes pelo estado de Israel, com um regime de expulsão (uma nova Naqba) e/ou de apartheid, sob a égide de governos de extrema-direita e de fundamentalistas religiosos, com o fim (já em curso) das correntes seculares e socializantes do sionismo inicial e com condições para atos como os recentes do Hamas ou para um conflito internacionalizado. Os palestinianos ficariam (ainda mais) sujeitos a um estatuto minoritário e refugiado noutros países. Seria um etnocídio.
13. O futuro utópico: o reconhecimento internacional de que a solução dos dois estados já não é possível, e que só um estado federal poderia acomodar dois objetivos: a continuação de uma sociedade e cultura israelita que já existe por si mesma como qualquer outra, independente da judeidade diaspórica, com cidadãos autóctones que não são pessoalmente responsáveis pela colonização inicial, e mantendo-se a necessidade de um lar judeu face ao antissemitismo que persiste; e a reparação da trágica injustiça a que os palestinianos têm sido submetidos, assegurando a sua permanência na sua terra, o retorno dos refugiados e exilados, e o fim da situação de ocupação e repressão. Uma solução federal ou confederal teria de passar por forte ajuda internacional, políticas de ação afirmativa para criar a agora inexistente equidade entre judeus e palestinianos, pela desmilitarização, e por forte vigilância de forças de paz internacionais.
Este é o campo dos judeus da diáspora e dos israelitas progressistas e críticos do estado étnico, e dos palestinianos frustrados com a impotência da Autoridade Palestiniana e ameaçados pelo crescimento de movimentos como o Hamas.
*Publicado no boletim da Associação Portuguesa de Antropologia e no jornal Público.