A coisa está a acontecer à vista de todos, mas parece que ninguém quer ver. É certo que se ouvem expressões como “o perigo da ascensão da extrema-direita”; comentários sobre a subida nas intenções de voto no partido da extrema-direita; ou críticas à ambiguidade da direita democrática face a eventuais alianças com aquele partido. Mas, e graças obviamente à sua entrada no Parlamento e ao crescimento do seu grupo parlamentar, são mais as situações de normalização da sua existência e discurso do que as situações de chamada de atenção, de aviso, de alarme.
Poderia ficar por este lamento. Que é, aliás, por onde se deixam ficar grande parte das intervenções minimamente preocupadas com “a coisa que está a acontecer”. É, todavia, necessário ir mais fundo. Num primeiro nível, não há como não reconhecer que os clichés, o discurso, os temas, os alarmismos gerados e reproduzidos por aquele partido já estavam a ser gerados e reproduzidos antes da sua existência oficial. Houve um trabalho exploratório, preparatório, “de sapa”. Esse trabalho foi produzido por empresas mediáticas que operaram a diferentes níveis de definição de público-alvo e linguagem: o Correio da Manhã e a sua TV atuaram e atuam para as massas com baixo capital cultural, de certa maneira produzindo o Chega; e jornais como o Observador atuaram e atuam no sentido de gerar na direita democrática uma deriva para a incorporação das agendas da extrema-direita, de certa maneira produzindo a crise do PSD. A liberdade de imprensa, informação e opinião é sagrada e incontestável — mas também o é, ou deveria ser, a responsabilidade que os media têm para com a democracia e a sua fragilidade. Não cumpriram nem cumprem com essa responsabilidade. Mais: são em grande parte responsáveis pela coisa que está a acontecer. São atores políticos plenos, geradores da “coisa”.
Há, claro, um nível mais fundo ainda, mais estrutural. Ele tem a ver com a desigualdade profunda da sociedade portuguesa, quer económica, quer cultural. Ela é geradora de fenómenos de ressentimento, de distância de experiência social entre governantes e elites, de um lado, e governados e povo, do outro. Parece simplista, mas é apenas simples — e é mesmo assim. Esses ressentimento e distanciamento não se articulam em formas de contestação organizada — sindical, partidária à esquerda, de movimentos sociais — a não ser de forma algo marginal, fraca, rotineira e burocratizada. Os media populares e as redes sociais, com a sua capacidade para câmara de ressonância da fala da rua e do desabafo sem contenção ética, ocuparam esse espaço de representação, mobilização coletiva e ação.
Este fundo estrutural é a base de ingredientes de um bolo que depois cresce num forno conjuntural: o da cedência da direita democrática aos argumentos da extrema-direita; e o da cedência da esquerda democrática ao que correntemente se designa como “neoliberalismo”. Assistimos a este processo também noutras paragens, estas mais europeias, desde pelo menos a perda das direitas democráticas para a extrema-direita nas zonas mais desenvolvidas da Europa, até à “Terceira Via” dos partidos social-democratas e socialistas. Ambas estas áreas da governação do pós-guerra cederam em quase toda a linha aos desígnios de uma fase do capitalismo que já não precisa da democracia. Quem precisa da regulação de conflitos, da negociação, ou da almofada do Estado social, quando a produção se deslocaliza do espaço da comunidade e os vínculos de trabalho se tornam precários de forma quase naturalizada? Sem chão comum não há democracia, e o desígnio da extrema-direita é justamente acabar com esse chão.
Também em Portugal é assim. Creio que muita gente ainda não se apercebeu de quanto a ilusão de imunidade à “coisa” era isso mesmo: ilusão. A extrema-direita portuguesa soube muito bem — daquela forma obviamente “inteligente” que caracteriza o cinismo oportunista — adaptar ao burgo a tendência internacional. O partido de extrema-direita não tem nenhuma crítica ao sistema neoliberal, rentista ou financeiro. Omite estrategicamente referências a ele. Sabe que não é através desse discurso que mobiliza o descontentamento, pois um dos triunfos do neoliberalismo foi saber “naturalizar-se”, aparecer às pessoas como a natureza das coisas, como, aliás, sempre o fez o capitalismo e as suas derivações filosóficas, de interpretação da história, da moral, da ética, da… natureza humana. A extrema-direita portuguesa não só não apresenta uma alternativa ao estado de desigualdade profunda em que vivemos, ela é mesmo aliada dele, é a sua versão mais atualizada, a que não precisa de democracia. Uma demonstração disso mesmo é a referida deriva da direita democrática para a extrema-direita. A democracia já não é precisa, e por isso o foco é na política étnica (“os ciganos”), nacionalista (com interpretações da História reminiscentes do salazarismo, incluindo a negação da existência de racismo), patriarcal (a família e a “ideologia de género”). E será em breve xenófoba também, face à imigração, como o demonstra já a contaminação do discurso de Carlos Moedas ou de Luís Montenegro por conteúdos de extrema-direita, ainda que disfarçados por retórica “civilizada”.
O plano é simples e é um plano “à húngara”: assaltar a democracia para a destruir, alterando a Constituição, apresentando as lideranças como “não-políticos antipolíticos”(!), e deixando intocados os interesses económicos e financeiros de grandes grupos empresariais. Face a isto, que fazem as esquerdas? A esquerda à esquerda do PS fica paralisada, porque os parâmetros da discussão política e da perceção das pessoas se alteraram radicalmente, tendo os destinos de mobilização mudado para as redes sociais, os pasquins, as causas ressentidas, paranóicas ou conspirativas, e o (compreensível…) salve-se quem puder económico — face às relações laborais precárias, e com a alternativa da emigração. A esquerda mais centrista, representada pelo PS, demonstra agora a sua profunda e insofismável fraqueza, apenas temporariamente atenuada pela Geringonça e pela capacidade de gestão de uma pandemia de “povo em casa”. Nem a maioria absoluta consegue ultrapassar os efeitos de uma deriva histórica no sentido da conciliação com quem tem as rédeas do verdadeiro poder: o capital (ah, como é bom recuperar sem vergonha estas palavras).
Só que o capital prefere, agora, dar espaço a Trumps, Bolsonaros, Venturas. A democracia já não lhe é precisa. E a melhor maneira de a destruir é dar largas à enorme cacofonia e caos do ressentimento, dos gritos de “vergonha”, da pessoalização moralista da política nas acusações de “corrupção” ou da generalização de crenças como “os políticos são todos iguais”. Como resistir a esta coisa que está a acontecer mas que ninguém parece querer ver? Certamente não será através de platitudes repetidas, sem explicitação de conteúdo e sem provas no real, sobre a ética republicana, o Estado de Direito, a democracia liberal. Deixo duas pistas: ou um populismo de esquerda, que, mobilizando sentimentos como os que a extrema-direita explora, os canalize para causas emancipatórias e de igualdade, acertando nos alvos que a extrema-direita esconde; e/ou o aprofundamento da social-democracia, uma social-democracia radical, séria, profunda, que tão-pouco esconda os alvos em cuja cama já se enrolou demasiado.
Ou, caso contrário, a “coisa” ganha isto tudo em meia dúzia de anos.
[Publicado originalmente em Almanaque]