Paisagem Mediterrânica (Picasso)

Três episódios num julho mediterrânico

MVA
5 min readJul 28, 2024

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Uma praia numa das ilhas Cíclades gregas no Mar Egeu. Um grupo de cerca de vinte homens na casa dos vintes brinca ruidosamente na água: lutas às cavalitas, risadas, amonas. De regresso ao areal, juntam-se todos, sentados como num acampamento. Coesos, tocando-se, rapazes, pasolinianos, dir-se-ia. Passo por eles e percebo que falam hebraico. Pela idade, é alta a probabilidade de terem saído do serviço militar obrigatório. É comum em Israel fazer uma viagem mais ou menos longa nesse momento. Para descomprimir. Para sair. Mas outro aspeto me chamou a atenção: o fenótipo. Do tom de pele às feições. E também as gestualidades, corporalidades e formas de falar (não vos maço narrando-as). Diria que quase todos seriam mizrahi — descendentes de judeus “orientais”, de países árabes ou muçulmanos, grupo que viria a constituir as classes sociais mais subalternizadas entre os judeus israelitas. E pensei: este não foram para Goa ou para a Tailândia, ou para Bali, como os mais afortunados costumam fazer. Muito menos terão a hipótese de obter a nacionalidade de um país europeu ou das Américas. A expulsão / extração dos seus avós dos países árabes ou muçulmanos foi um corte definitivo. Não há plano B, talvez uma razão, junto com a marginalização, a subalternidade étnica e social (mesmo sendo hoje maioria) e, sim, a própria origem cultural árabe, para serem um dos segmentos que mais adere a um racismo anti-palestiniano. É óbvio que não consegui deixar de pensar no que se passou no 7 de outubro e no que se passa ainda em Gaza, e no contraste com aquela descompressão de praia. Como não consegui deixar de pensar em como a sociedade israelita criou uma cultura militarizada, nacionalista e chauvinista, em contraste com a tradição judaica pacífica, de pensamento, de comunidade e da prática de tikun olam — reparação do mundo.

(Um dos moços aproxima-se de três raparigas deitadas na areia noutra parte da praia. São esbeltas, brancas, de cabelos claros e biquinis estilosos. São também israelitas. Os seus traços asquenazitas e a sua postura de classe afastam o rapaz ao fim de meia dúzia de palavras. Vejo-as, quando o rapaz se afasta, rebolar os olhos e darem risadinhas paternalistas).

Quando volto para a minha toalha regresso à leitura de “Moving Kings” de Joshua Cohen. Não é que calho logo numa passagem sobre as questões étnicas e de classe que referi, desta feita em torno das personagens dos dois moços que, saídos do serviço militar, emigram para os EUA onde vão trabalhar na empresa de mudanças do tio de um deles?

Os rapazes continuam a divertir-se. E ainda bem, pois é fatalmente no horror do mundo que nos divertimos, não há outro contexto.

Uma amiga foi em viagem turística à Turquia. Perto do memorial a Atatürk em Ancara fazia tanto calor que sacou do único leque que tinha levado consigo. Tenho um igual. Foi-nos dado numa conferência da Associação Canadiada de Antropologia que se realizou há uns anos em Santiago de Cuba. O leque diz “CASCA-Cuba” (CASCA sendo o nome da associação). Subitamente foi abordada por polícias turcos aos gritos. Nenhum falava inglês. Foi levada para uma esquadra. Finalmente alguém serviu de intérprete. Foi-lhe dito que não podia estar em público — para mais naquele local — com uma coisa dizendo Cuba, “um país comunista”. Ingenuamente siderada (e ainda bem, bom sinal…), viu-se na obrigação de explicar o contexto da origem do leque. Como era turista e estrangeira, acabaram por deixá-la ir.

Mas já perceberam a moral da história, certo? Espero que sim. Habituados que estamos a saber que a Turquia de Erdogan está num processo totalitário e fundamentalista (também os relatos da minha amiga sobre a quantidade de burkinis nas praias contrasta com as narrativas dos anos oitenta da minha saudosa amiga turca, a Fatos) não nos ocorreu que esse processo se pode manifestar na ação da polícia normal como polícia… política. É assim que o fascismo se insinua e expande, minhoca na maçã: episódio aqui, episódio ali, até que a normalização acontece.

Este episódio foi-me narrado por uma colega, que o ouviu de outros colegas que o terão presenciado. Pode não ter sido exatamente assim, o grapevine é demasiado extenso, e alterarei o texto, se necessário, quando tiver a oportunidade de falar com o meu colega visado no episódio. Importa, sim, que este funciona como estória exemplar — e se non è vero è ben trovato. Em Barcelona, na conferência da nossa associação antropológica europeia foi apresentada uma moção a favor do boicote académico a Israel. Um colega meu — sénior e um dos fundadores da própria associação — terá comentado criticamente algum aspeto da moção. (Não importa nada, para o caso, no quê, nem a minha opinião, mas adianto que sou a favor do BDS, depois de muito tempo de hesitação ética). Uma pessoa na assembleia contestou imediatamente a sua fala referindo a branquitude do meu colega e aspetos da sua biografia, nomeadamente o país onde viveu e estudou em jovem. Irritado com a pessoalização do debate, o meu colega terá dito à interveniente que se calasse. Outra ou outras pessoas terão chamado a atenção para o facto de a interveniente ser, creio, paquistanesa, pelo que o “cale-se” do meu colega teria sido, assim acharam, um ato de violência colonial. Esta posição terá sido apoiada pela mesa, isto é, pela direção da associação.

Moral da estória (da história, da História): ninguém parece ter-se preocupado muito com o facto de a interveniente ter contestado o meu colega na base do que ele é e não na base do que ele diz ou faz (sendo que, por acaso, tem publicado textos de contestação anticolonial…). E o apoio à contestatária terá assentado também no que ela é. O problema de muitos debates nas comunidades científicas, ativistas, políticas, etc., está a ser precisamente este. E não é assim, nas relações interpessoais, que se mudam as estruturas de poder e suas heranças perpetuadas. Carregamos sociologias, por assim dizer, sem dúvida, como no primeiro destes três episódios. Elas podem ajudar-nos a pintar o fresco duma sociedade. Mas elas não podem reduzir-nos.

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